Um piano ao cair da tarde
O Cais
Nº 100
Edição: junho/2000
Dia desses, feito alguém acometido de mal súbito, a bateria do meu automóvel encerrou sua vida útil. Em consequência, o rádio foi desativado. Às estações previamente programadas para entrar no ar mediante o aperto de um botão reservou-se idêntico destino.
Substituída a bateria, coube-me reprogramar o rádio, mas não consegui recordar-me das frequências anteriormente selecionadas. Sendo assim, optei pelas estações que, no momento da reativação, estivessem transmitindo músicas do meu agrado. Numa delas, retornei ao verdor dos vinte anos. Julgava não mais existir o programa sintonizado, Um piano ao cair da tarde. Em determinado período no qual habitualmente o ouvia, dividia-me entre o rádio e o telefone. Num, a magia do som proveniente do teclado. Noutro, a voz quente da mulher madura a me sussurrar ternuras. Falava-me, também, de desapontos e esperanças, de tristezas e alegrias, do trivial e do inusitado, de realidade e sonho
Tudo começou casualmente, erro de discagem, e prosseguiu por seis meses, de segunda a sexta-feira, invariavelmente ao cair da tarde. Morena, olhos negros e tristes, corpo apetecível, a mulher madura confessou-me ser assim. Quando lhe propunha nos encontrarmos, destacava meu cavalheirismo, elogiava o tom de minha voz, solfejava uma canção, fazia de um tudo para mudar o rumo da prosa.
Numa tarde de chuva fina, ao som do piano de Ed Duchin, sem aviso prévio, assim feito a bateria do meu automóvel, a mulher madura deu os trâmites por findos. Por cerca de duas semanas, aguardei o telefonema que não veio. Voltar a ouvir o programa, tanto tempo decorrido, trouxe-me de volta a voz sussurrante da mulher madura. Não sei se verdadeiras ou fantasiosas as confidências que me fez. Quanto a mim, esbanjei sinceridade. Mostrei-me pelo avesso, expus meu coração numa bandeja de prata, desvelei as inquietudes, as perplexidades, os deslumbramentos dos meus vinte anos. Do tanto que falei para a mulher madura, apenas uma inverdade sou levado a assumir: meu nome nunca foi Roberto!