Tempo de plantio e de colheita
O Correio
Tema: Aposentadoria
Edição: de 15 de setembro a 14 de outubro de 2002
Em seu primeiro mandato, no auge da reforma do sistema previdenciário brasileiro, que estabeleceu novos limites de tempo para a aposentadoria, o presidente Fernando Henrique Cardoso tachou de vagabundos os aposentados. Para ele, os trabalhadores retiravam-se demasiadamente cedo do mercado de trabalho. Aposentadoria e morte, segundo o raciocínio de FHC, deveriam estar bem próximos um do outro. Assim, o equilíbrio financeiro dos cofres previdenciários seria mantido. Quanto às fraudes, aos gerenciamentos incompetentes, Sua Excelência não se pronunciou. Ateve-se aos “vagabundos”.
Ao mencionar a desastrosa opinião presidencial, recordo-me do texto que recebi ao me aposentar. Aplica-se indistintamente a quem quer que seja, esteja onde estiver, seja em que tempo for. Com autorização da autora, Lena Jesus Ponte, permito-me relembrar alguns trechos dele:
(…) “Quero falar em liberdade. Celebrar uma revolução individual na vida de quem assume a difícil empresa de ter responsabilidade consigo mesmo, com seu corpo, sua afetividade, seu desejo. Administrador da própria vida, hoje, porque antes o tempo era empenhado na luta pela sobrevivência, na busca da afirmação profissional”. (…)
(…) “Conclui-se uma fase da existência, intensa e criativa. Mas não se encerra a vida nem a criação. Aposentar-se longe está de significar ´recolher-se aos aposentos`como sugere a etimologia. Melhor talvez cunhar o termo ´apossentar-se`, que representaria tomar posse de si”. (…)
(…) “Inicia-se outra fase da existência, intensa e criativa: tempo de amar sem pressa. Fase da leitura só por gosto, do curso que der na telha. Fase de começar trabalhos nunca antes cogitados, de pensar mil projetos, executar mil projetos, de fazer tudo que seu mestre o desejo mandar. Fase de viagens, de redescobrir o caminho marítimo para as Índias”. (…)
(…) “Antes de tudo, momento de muita poesia no papel e na vida. O corpo, seu verso; a alma, sua rima. Momento de olhar tolerante o mundo e escrever a crônica de seus habitantes. Momento de fabricar novos sonhos e persegui-los, só que agora, sereno. Momento de plantio e de colheita”. (…) Aposentar-se, senhor presidente, é isso. Cruel, muito cruel encurtar o tempo de duração de tão fecunda “vagabundagem”.