Retrato sem moldura
Laços de afeto
Mudavam-se à revelia. Por vontade própria, Aurélio e Mercedes permaneceriam no velho apartamento. Mais, aos noventa, os desejos trocam de dono. Os filhos haviam decidido tê-los por perto, assim seria. Impotentes, presenciam a profanação de seus guardados. Os filhos, o genro, a nora, os netos, remexem armários e gavetas. Urge selecionar o que os homens da transportadora irão embalar e eles não tardam.
Mercedes vê os sacos de retalhos dos mais variados tecidos serem postos de lado. Aurélio não entende o descarte dos papéis de embrulhar pão, dos pedaços de barbante, das bulas, das caixas e dos vidros de remédio vazios. Afinal, estavam todos meticulosamente arrumados…
Miçangas e paetês espalham-se pelo chão, assim como pedaços de isopor, purpurina, velas de aniversário e enfeites de Natal.
Do bojo de um armário, saem sapatos fora de moda, bolsas dos mais diferentes feitios e tamanhos, alguns chapéus, todos vetados por uma comissão de netos.
Enquanto o genro amontoa junto à lixeira jornais amarelecidos, a filha descarta os bibelôs. Os álbuns de retratos sofrem verdadeira pilhagem: sem pedir permissão, cada um abocanha um naco do passado. Quando chega o pessoal da transportadora, tudo está definido.
Aurélio e Mercedes entreolham-se. A cumplicidade de mais de meio século é suficiente para indicar-lhes o que fazer. De uma pasta de couro, já um tanto desbotada, retiram os documentos. Com tesouras de ponta fina, em silêncio, picotam as cédulas de identidade.