Noturno em mi bemol & outros contos ligeiros

Andorinhas da Áustria

Não era uma academia de dança tão somente, mas um lugar lúdico, fraterno, onde todos sabiam os nomes uns dos outros. Na antessala, enquanto aguardavam a vez, as pessoas formavam pares espontâneos, ensaiavam passos. No salão reinava cumplicidade entre os casais, como se cada qual, do outro, soubesse os mais secretos anseios, os segredos mais escondidos. Era comum que o mestre e sua partner surgissem repentinamente, puxando a dança. E todos iam no rastro feito cauda de cometa. Assim o clima daquele lugar quase mágico.

Felicidade, por que escondê-la? Foram então dizendo, aqui, ali, acolá. Muitos outros se achegaram, ansiosos, atraídos pelo cometa. Felicidade é coisa de poucos, difícil de repartir? Pois foi assim que se deu. Diluída na incerteza das relações, a cumplicidade esvaiu-se, o espontâneo deixou de existir. Depois vieram a catraca, o cartão magnético, o inflexível porteiro. O mestre? Continuou exercendo competentemente o seu ofício, mas sem lirismo. Desistiu de surgir no salão com sua partner, intempestivamente. Não mais deixava rastro a ser seguido. A Academia, antes um lugar quase mágico, agora era como tantas outras.

Por tudo isso, a Mulher-Que-Sonha afastou-se. Retornou tempos depois. Sem o cartão magnético. O Porteiro-Inflexível não permitiu que ultrapassasse a catraca. O Mestre-Sem-Lirismo nem se tocou. A Mulher-Que-Sonha ficou ali, na antessala, onde antes as pessoas formavam pares espontâneos e ensaiavam passos. Espichou o olhar para o salão na busca de cumplicidade para a ideia que bailava em sua mente, mas não achou parceria. Então agiu solitariamente.

Para perplexidade do Porteiro-Inflexível, a Mulher-Que-Sonha saltou a catraca, invadiu o salão. Ao som da Valsa de Strauss, tocada por invisível orquestra, começou a dançar. E dançava… e dançava… Um dos casais pôs-se também a valsar. E o segundo, e o terceiro, e todos os casais. Quando a Mulher-Que-Sonha pressentiu cumplicidade, lançou-se pela janela. E todo a seguiram, em revoada.

O Mestre-Sem-Lirismo olhou para a catraca, para o cartão magnético, para o salão abandonado. Lá fora, em voo migratório, um bando de avezinhas varava a imensidão.

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