Nau dos enjeitados

O Correio
Tema: Sob o signo da melancolia
Edição:
de 18 de setembro a 2 de outubro de 1999

É comum para quem vive um amor não correspondido acordar envolto em brumas, habituar-se a mastigar silêncios, obrigar-se a afagar espinhos. Para esses desafortunados, reservam-se inquietudes. Umas são cacimba, carecem de escavação. Outras, feito olho-d´água, brotam do fundo do peito, lacrimais, perenes. Existem as menos acres e as muitos amargas, assim como as brandas e as impetuosas, as secretas e as que se permitem desvelar.

Para os que vivenciam amores assim, o ar é abafado. De nada adianta ir à janela atrás de uma brisa fujona. Nem buscar distrair-se na captura de bicho-nuvem, pois todos estarão em suas tocas. Quando muito, desgarrado, pode haver um tigre caolho, uma estrela brilhando em seu olho são.

Nas estantes desses desditosos apaixonados, poemas são pássaros no cativeiro, incapazes de uma revoada.

A isso não se resume a sofrência dos enjeitados. Além das manhãs cinzentas, dos silêncios sepulcrais, das carícias incomuns, das inquietações, do ar sufocante, dos versos de asas inúteis, outros flagelos os ameaçam: os amigos volatilizam-se; os cantores desafinam; os domingos trazem o tédio; as noites ficam escuras e frias; as madrugadas, insones. Quem se deixa vitimar por um desses amores enviesados navega num veleiro sem velas por um mar de granito.

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