Na crista da onda hertziana

O Correio
Tema:
Nos tempos do rádio
Edição:
de 17 a 30 de janeiro de 1998

Ao entrar em minha vida, o rádio era um caixote repleto de válvulas e chiados. Em 1952, o invento de Marconi pregou-me uma peça: deixei de ouvir os momentos culminantes da partida em que o Brasil se sagrou, pela primeira vez, campeão de futebol além-fronteiras, em Santiago do Chile. Na metade do segundo tempo, a transmissão transformou-se num barulho dissonante. Somente na manhã seguinte pude saber: éramos campeões pan-americanos.

O rádio povoou minha infância, marcou-me a adolescência. Recordo-me de Maria Helena e sua negritude, sua gargalhada sonora. Aparelho sintonizado na Rádio Nacional, cuidava das tarefas domésticas. Fanzoca de Ângela Maria e de Cauby Peixoto, largava tudo quando a voz de um dos dois ecoava.

Alguns programas permanecem nítidos em minha memória. Entre eles, “O direito de nascer”. Certa feita, família reunida, atenta ao capítulo da novela, faltou energia. Aboletamo-nos no automóvel de meu pai a tempo de ouvirmos Albertinho Limonta confessar para mamãe Dolores seu amor por Isabel Cristina. Outro de que me lembro é “Papel carbono”, conduzido por Renato Murce, no qual o calouro se dispunha a imitar um cantor consagrado. Ary Barroso e Jorge Curi também se dedicaram aos iniciantes. Tão logo o candidato a cantor cometia um deslize, Ary sinalizava e um antigo porteiro da emissora, Tião Macalé, fazia soar o gongo. Em “A hora do pato”, a estratégia de Jorge era outra – um estridente grasnar. Lembro-me ainda de “Nada além de dois minutos”, com Paulo Roberto; “A crônica de uma cidade”, de Genolino Amado, na voz de César Ladeira; Heron Domingues e o “Repórter Esso, a testemunha ocular da História”; Manoel Barcelos e César de Alencar com seus programas de auditório (Marlene e Emilinha Borba, cada qual com seu fã-clube); “O Anjo” e “Jerônimo, o herói do sertão”. Na Rádio Eldorado, para corações enamorados, “Um piano ao cair da tarde”. Nas noites de sextas-feiras, histórias de matar de medo, quando Almirante levava ao ar o seu “Incrível, fantástico, extraordinário”. Aos domingos, as narrativas de Oduwaldo Cozzi transportavam a emoção do estádio para o interior da residência de seus ouvintes. Logo após o futebol, os humorísticos “Piadas do Manduca” e “Tancredo e Trancado”. Por falar em humor, vale recordar “Balança, mas não cai” (Brandão Filho, o primo pobre, e Paulo Gracindo, o primo rico, brilhando intensamente); Lauro Borges e Castro Barbosa com a hilariante PRK-30; na Rádio Mayrink Veiga, Zé Trindade, Nádia Maria e muitos outros notáveis comediantes davam vida aos textos de Max Nunes. O rádio marcou-me, também, relativamente ao trágico. Na primeira vez em que a morte me mostrou as garras, ele esteve presente. Era tempo de terrenos baldios. Num deles, um campo de futebol. Ao lado, numa pequena colina, algumas casas humildes. Não me recordo do nome dela, mas era sestrosa, corpo de gazela, olhar provocante, andar de bamboleio, festa para nossos olhos de menino. Morava lá no morro. Tinha seu homem, rude e ciumento. Quando em vez, se imaginava traído e surrava a mulata dos nossos devaneios. Numa tarde ensolarada, enquanto corríamos atrás da bola, ela bebeu guaraná com formicida. Para abafar os gemidos, ligara o rádio a todo volume. Alguém anunciou o suicídio no exato momento em que a voz de Anísio Silva, como se pertencesse ao algoz de nossa musa, deixava no ar um veredicto: “Conheço bem suas promessas, / outras ouvi iguais a essas, / esse seu jeito de enganar conheço bem…”

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