Movimento circulatório
De volta à cidadezinha, fico sabendo das culpas do gado e da caduquice do carrilhão
Quando em vez volto à cidadezinha. Para que não se quebre o encanto, espacejo as idas. O hábito, se por um lado faz o monge, em outro sentido desfaz a magia. Quando por lá aporto, vou futucar meus longes. Não creio prudente remexê-los amiudadamente.
Faz-me bem, na cidadezinha, conversar com sua gente mais antiga. Menino, eu os mitificava. Cada qual exercia em mim um fascínio. Todos me pareciam fortes e poderosos. Todos donatários da verdade, eu presumia. Hoje, os que ainda não se aventuraram a desvendar o grande mistério, se mostram frágeis. Gosto de ouvi-los gabarem-se de seus feitos, quando seus olhos se desembaçam e ganham viço as pregas do rosto.
“Já cavalguei esses morros todos” – um deles me disse. E prosseguiu: “Agora aqui estou, pernas bambas, olhos apagados, esperando minha hora”. Foi em frente: “Naquele tempo era o carro de boi, hoje é o caminhão. Um transportava frutas, legumes, verduras, leite… O outro carrega pedra, cimento, vergalhão”. “Culpa do gado!” – sentenciou, justificando a seguir: “Comeu os frutos silvestres, pisoteou os campos. Antes, a terra era macia, tinha um cheiro gostoso. Agora é isso aí, quase que só poeira”.
Rapidamente, espantou o desaponto, empertigou-se, falou de amenidades. “Vê aquele relógio?” – indagou, mostrando o carrilhão. Com voz marota, prosseguiu: “Certa vez, cheguei madrugadinha, buscando que o assoalho não gemesse, mas uma tábua delatora pôs tudo a perder. Se não bastasse, o bandido do relógio badalou três vezes”. Ao ter que abrandar resmungos, aplacar a zanga, tratou de apelar: “Tá caduco, mulher, esse carrilhão. Dez da noite e o desinfeliz marca três da madrugada. Ora onde já se viu!”.
Deixei-o lá, riso e tosse se confundindo, encarapitado no lombo da saudade, a cavalgar por prados intermináveis.
Solidário ao cineasta, faço uma analogia e visto capa de causídico
Disposto a asilar-se, o soviético Andrei Tarkovsky justifica a atitude no bojo de um desabafo. E diz: “Para as autoridades do meu país, simplesmente não existo”. Mesmo sem sofrer condenação ostensiva, enfrenta o desaponto de cartas não respondidas, filmes não exibidos, projetos indefinidos. Farto desse desdém, quer deixar sua terra.
Dou-lhe razão. Nada fere mais, nada machuca tanto, do que a indiferença. Quem por ela é vitimado, ai!, como sofre. Como é amargo e torturante o desprezo. Você, leitor, já foi por ele acuado? Já se viu envolvido por seus tentáculos? Sentiu seu abafamento? Se lhe conhece os efeitos, há de imaginar o sufoco de Tarkovsky, premiado cineasta, vencedor de festivais internacionais. Afinal, ele quer apenas dizer o que pensa por meio de seus personagens, por sinal frágeis e líricos mais do que contestatórios. Não admite, por conseguinte, atrelar-se aos preceitos da arte ideologicamente dirigida. Daí a marginalização, a crueldade burocrática, o descaso. Daí também o desânimo, a vontade de se mandar.
Quanto a mim, envolto certa feita nas malhas da indiferença, entendo Tarkovsky em seu desaponto. Deu-se em tempos adolescentes. Casa cheia, era período de férias escolares, a garagem virou albergue, abrigando em camas improvisadas uma penca de primos, todos mais velhos do que eu, também ali acampado. Bela noite, foi um tal de cochichar, de tramar em surdina, até quase amanhecer. Isso eles lá, para mim não deram trela. Nada de hostilidades, vale a ressalva. Apenas um velado tratamento. Noite seguinte, somente eu me recolhi no horário de sempre. Os primos, só madrugadinha. Alegres, comentando, entre eles, lances da noitada no bordel. Amargurado, pensei: para meus primos, inexisto. Desapontado, manhã seguinte decidi pedir asilo, confinar-me na casa do vizinho.
Exagerei, leitor, ao unir numa analogia meu desaponto ao de Tarkovsky? Defendendo a própria causa, direi que não. Afinal, frustração de adolescente deixa marcas de ferro em brasa.
Carregado de tijolos, em terreno movediço, pego-me a questionar sobre a palhoça e o arranha-céu
Só o amor constrói, muitos afirmam. Há, porém, quem diga ser o amor uma carência que as pessoas insistem em preencher, quase sempre em vão. E agora? O amor fortalece ou enfraquece? Aquele que muito ama curte liberdade ou mastiga dependência? Você, leitor, o que pensa? Quem ama tira proveito ou estará em desvantagem? Fique aí matutando enquanto volto às premissas primeiras. Amor, construção ou carência? Tijolo ou areia movediça? Somos todos um bando de carentes almejando abrigo seguro? Nem sempre o terreno permite fincar estacas?
Mais lenha para a fogueira. Sendo possível construir, quanto maior a quantidade de carências preenchidas mais volumosos serão os destroços caso ocorra uma implosão. Já um amor de palhoça, se por um lado abriga magras carências, por outro não gera escombros.
A ponta de um desaponto desembaraça a meada, requenta o café, risca a pedra do isqueiro, faz correr o riacho e traz à baila o ato de restaurar, a coleta do figo e os cinco sentidos
Minha amiga deixa que o desaponto aflore. Diz do seu relacionamento desgastado, do cansaço que envolve o ato de fazer andar uma relação capenga. Fala da vontade de recomeçar e da dificuldade que vem encontrando. “Já não somos crianças… acaba sendo difícil…”. Fico mastigando o seu dizer, ruminando pensamentos. O segredo, quero crer, é não haver perdido o fio da meada. Ou, caso tenha escapulido, poder encontrá-lo em meio ao emaranhado.
Vou adubando premissas, variações sobre o mesmo tema. Muitas vezes, o recomeço tem gosto de café que se requenta. Ou se assemelha a pedra gasta de isqueiro: faísca, mas não faz fogo. Pode, entretanto, fortalecer. Basta que flua feito regato de serra, mas há que se prevenir das enxurradas na estação das águas. Começar de novo assemelha-se a restaurar obra de arte, pede sensibilidade. Não sendo assim, vira remendo. Recomeço não deve ocorrer num repente nem se arrastar indefinidamente. Lembra apanha de figo: prematuramente, vem sem doçura; amadurecido e não colhido, passarinho esburaca. Pede, enfim, narinas sensíveis, olhos argutos, ouvidos apurados, tato de mãos carinhosas, paladar de enólogo. Por tudo isso, amiga, e muito mais, acaba sendo difícil recomeçar.
Sapatos polidos e balas de tamarindo
Aboleto-me na cadeira do engraxate, pálido menino, nem adolescente ainda. Fiquei entre ele e o senhor de alva carapinha. Talvez em função da cadeira, tenha escolhido o garoto. A do idoso era incrementada, dessas que lembram trono, e eu não quis me sentir monarca.
Faz um dia calorento, bola de fogo no céu, ar de abafamento, nuvem nenhuma. Observo os passantes. Vão apressados, peles reluzentes, roupas empapadas. Eis que alguém se esganiça. Voz de lâmina, cortante, navalha no ar abafado a fazê-lo em fatias. “Balas de tamarindo!”.
Olho em direção à dona da voz, menina magricela, nitidamente sem jeito no papel de ambulante. Vê-se que não possui vocação. Pilhada em flagrante, encabula-se. Nervosamente, sorri e volta a se esganiçar. Surte efeito. Vende vários saquinhos. Anima-se. O camelô da esquina demonstra não gostar da concorrência. A menina dá de ombros, subitamente vocacionada.
Alguns compram sem muita certeza do que adquirem. O preço os atrai. Consumir, assim tão em conta, talvez lhes preencha uma necessidade. A pilha de balas diminui. Sapatos polidos, adquiro dois saquinhos. Balas de tamarindo… azedinhas…
Que me perdoe o Onofre, mas hoje nem cato ouro nem tranço a palha
Segundo José Onofre, crítico literário, a cabeça de um escritor é um pacote infinito de frases, de pedaços do cotidiano, de conversas, de trechos lido, de monólogos imaginários. Amarrado pelas emoções, ele diz, tudo se canaliza por meio de uma certa técnica organizadora para transformar-se no ouro ou na palha da literatura.
Parte disso me ocorre agora, quando busco lenha para a fogueira. Diálogos do dia a dia, leituras, conversas de mim para comigo boiam no meu pensar, mas apenas consigo frases soltas, descosturadas. Por estar amorfa a emoção, fica-me difícil canalizar as ideias.
Teimo em encontrar um tema. Que tal os tecnocratas? – eu me indago. Desisto. Tecnocracia não se casa com emoção, que se caracteriza por uma reação intensa e breve do organismo a um lance inesperado, naturalmente acompanhada de um estado afetivo de conotação penosa ou agradável, ao passo que o tecnocrata busca soluções meramente técnicas e racionais. Vai daí, descarto o assunto.
Penso então em inspirar-me nos poetas, mas Gil, o Gilberto, corta-me o barato: “Deixe a meta do poeta, não discuta / deixe a sua meta fora da disputa / meta dentro e fora, lata absoluta / deixe-a simplesmente metáfora”. Respeitosamente, ponho de lado a temática.
Quem sabe encontro no carnaval lenha para a fogueira? Desisto outra vez, o tempo é de cinzas…
Tem jeito não, Onofre, temo estar mesmo sem tema. Quando a emoção não palpita, nada se transforma em pepita. Definitivamente, hoje não canalizo, não transo coisa que valha, não tranço uma única palha.