Maldição ao rés do chão
O Correio
Tema: Os malditos interditos
Edição: de 15 de novembro a 14 de dezembro de 2002
Meus companheiros de O Correio provavelmente incursionarão pelas artes, pela política, pela ciência e outras áreas nobres, por onde acampam amaldiçoados famosos a merecerem relembranças.
Num contraponto, abordarei um maldito situado ao rés do chão, o lobo das histórias infantis, execrado por fazer mingau de criancinhas, por invadir domicílios, por devorar a vovozinha e travestir-se com a roupa da velha senhora à espera de carne mais tenra.
Em outubro de 1984, na cidade de Veneza, por iniciativa do advogado, folclorista e antropólogo Domenico Carboni Schittar, o referido canídeo foi submetido a um tribunal integrado por etnólogos, estudiosos de tradições populares, antropólogos e juristas. Relativamente ao acontecido entre o réu, Chapeuzinho Vermelho e sua avó, buscou-se responder à seguinte indagação: “Seria o lobo culpado de violação de domicílio, sequestro, estupro e homicídio?”.
Aurélio Verger, pela promotoria, acusou-o de ser a transfiguração de um homem sexualmente faminto, atraído por meninas e até mesmo por avozinhas. Tarado sexual, portanto! Já Domenico Schittar, responsável pela defesa, defendeu a tese de que, por detrás do conto, camufla-se um ritual de iniciação capaz de tornar as crianças temerosas e obedientes. Para ele, verdadeiros culpados são os que converteram o lobo em bode expiatório de fobias coletivas. O relato do mencionado julgamento consta do livro Cappucetto Rosso ed il “suo” Lupo – um processo a Venezia (Tipo Litografia Marghera).
Certa vez eu disse a um pequenino que o lobo é boa-praça. E arrematei: “Quando em vez dá as caras para um bate-papo amigável”. O garoto arregalou os olhos. Voz trêmula, indagou-me: “Ele sai do disco?” Dito isto, guardou apressadamente a bolacha de acetato. Como se vê, mesmo absolvido em Veneza, o pobre não se livrou do peso da maldição.