Julgamento em Veneza
O Cais
Nº 107
Edição: março/2001
Tempos atrás, disse ao pequeno Rafael: “De vez em quando, o lobo aparece para um dedo de prosa…”. Voz trêmula, o menino indagou-me: “O lobo sai do disco?”. – e guardou apressadamente a bolacha de acetato.
Rafael teve razão ao expressar seu temor. Sempre lhe mostraram um lobo malvado. Como castigo, nenhum final feliz para o animal. Nas aventuras do Pequeno Polegar, é abatido a machadadas; em seu confronto com os três porquinhos, acaba escaldado num caldeirão de água fervente; na casa da avó de Chapeuzinho Vermelho, estrebucha após levar um balaço do caçador.
Em outubro de 1984, em Veneza, realizou-se inusitado julgamento. Na acusação, Aurélio Verger. Na defesa, Domenico Carboni Schittar. No banco dos réus, o Lobo Mau. A pendenga jurídica está descrita num livro de 197 páginas, Cappuccetto Rosso ed il suo lupo – um processo a Venezia.
Seria o lobo culpado de invasão de domicílio e homicídio? Aurelio Verger foi além: para ele, o animal em questão era a transfiguração de um homem sexualmente faminto, capaz de sentir atração por meninas e até mesmo por vovozinhas. Tarado sexual, portanto!
Domenico Schittar apegou-se à tese de que Chapeuzinho Vermelho seria uma adolescente de 15 anos presumíveis. Por detrás do conto, camuflar-se-ia um rito de iniciação sexual de uma tribo africana primitiva, cujo objetivo era tornar as iniciadas temerosas e obedientes.
O júri popular considerou o conto dos irmãos Grimm, que esconde esse aspecto, como a transposição literária do mencionado ritual. Sendo assim, o lobo não era lobo, era homem. Isso posto, absolveu o réu! Deve-se, portanto, a Domenico Schittar a redenção do Lobo Mau. Pena que Rafael tenha crescido. Provavelmente, ele já não se permita a magia de outros tempos. Caso contrário, poderíamos marcar um encontro como o redimido canídeo.