Embalagens e embalos

O Cais
Nº 135
Edição:
agosto/2003

O presente chegou-me pelo Correio, duplamente embalado. Primeiramente numa caixa de papelão. Dentro dela, uma lata em cuja face anterior há uma reprodução do quadro Jazz V, de Gustavo Ortiz. No interior do segundo invólucro, quatro CDs com gravações de músicas cantadas por Nat King Cole, seus maiores sucessos. O mimo, por conta dos 60 anos que acabo de completar, me foi ofertado por Marina, minha mãe, criatura sensível, capaz de captar sutilezas. Dona Marina sabe das coisas. Acertou na mosca. O presente remeteu-me aos Anos Dourados, levou-me de volta à adolescência, tempo de incertezas, de arrebatamentos, de sonhos e de noites insones.

Naquele tempo havia também Johny Mathis, Frank Sinatra, Lucho Gatica, Agostinho dos Santos, Maysa, Lúcio Alves e tantos outros cantores primorosos, mas meu preferido era mesmo aquele negro de voz aveludada, Nathaniel Adans Cole. Ironicamente, “a indesejada das gentes” o levou por conta de um câncer na laringe, moço ainda. Mas a tecnologia o preservou. Ei-lo novamente a me encantar, por especial atenção de quem me trouxe à vida.

Ouvir os CDs me conduz de volta aos bailes em casas de família, tão comuns naquela época. Onde andarão os que habitam minhas lembranças e os meus álbuns de retratos? Em que imensidão se perderam? Minhas musas de então, o que o tempo terá feito com elas? Em que brenhas se enfurnou esse alguém que já não sou, o rapazote magrelo e sonhador que se extasiava com a voz de Nat King Cole? Ah, minha mãe, seu presente fustigou meus longes… Adorei recebê-lo. Retirado das embalagens, foi ele que me embalou. E houve mais a me envolver: o seu afeto, eterno útero a me aconchegar nesses 60 anos de anseios e perplexidades.

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