Croniquinha oftalmológica
O Correio
Tema: O olhar de cada um
Edição: de 20 de fevereiro a 5 de março de 1999
Na década de 1960, o cantor lusitano Francisco José fez relativo sucesso cá na terra descoberta por Cabral. Numa das canções que interpretava, rendia homenagens aos “olhos castanhos, de encantos tamanhos, raios de luz”. Quanto aos de outros matizes, fazia-lhes restrições. “Olhos azuis são ciúmes”, ele dizia. “Verdes, traição, cruéis feito punhais”. Já os negros, esses abrigam “tristeza sem fim”.
Eu, que vejo os olhos com outros olhos, percebo os atentos, capazes de captar sutilezas; os desatentos, portadores de miopia existencial; os dissimulados, propícios à desfaçatez; os delatores, que dão serviço completo.
Existem olhos pedintes, compridíssimos, lânguidos, próprios dos carentes e dos mal-amados; olhos de mormaço, privativos dos paqueradores; olhos em brasa, peculiares aos apaixonados.
Olhos tristes são independentes. Quem os possui pode estar na maior das alegrias, eles continuam melancólicos. São assim também os alegres, igualmente donos de si. Vi, num velório, uma viúva portadora de uns olhos desses. Enquanto a coitadinha sofria, eles cirandavam. E os tímidos, cujas pestanas são postigos?
Conheço olhos abomináveis, contundentes, estupradores. Já os maliciosos, esses merecem perdão. Os cínicos, nem tanto. Lembro ainda os severos, em nada semelhantes aos agressivos. E os bondosos, olhos de enseada. Os de fatigadas retinas, os distantes, os inquiridores… Voltando ao Francisco José, o gajo que se acautele: com as atuais lentes de contato, todos os olhos podem camuflar-se de castanhos.