Como teço minha teia

O Cais
Nº 142
Edição:
julho/2004

Tempos atrás, se indagado como se manifestava em mim o processo da escrita, dizia possuir cios literários, quando me enroscava nas pernas da inspiração. Nessas ocasiões, um frase, um gesto, uma ponta de acontecido, um sopro, um lampejo, um pensamento esparso serviam de motivação. Em cio literário, eu virava cadela despudorada, não escolhendo hora e local para o ato da escrita.

Mas havia, também, entressafras. Em momentos assim, por mais que plantasse uma ideia ela não vingava. Quando muito, vinha minguada, sem alma.

Segundo Millôr Fernandes, as palavras estão nos dicionários e pertencem a todo mundo. Para ele, as ideias são da humanidade e chegam até nós no convívio de todos, cultos e iletrados. Cabe a cada qual tecer a própria teia.

Mas as palavras, caro Millôr, são caprichosas: servem à ira e à mansidão, à razão e aos casuísmos; geram pontes e abismos; prestam-se ao sussurro e ao libelo; são bálsamo e são cutelo. Tímidas e agressivas, ponderadas e intempestivas, inconsequentes e profundas, crentes e profanas, prudentes e afoitas, indomáveis e escravas, assim são as palavras.

Com o tempo, percebi: o trançar da teia não exige apenas inspiração – o cio. Faz-se necessário, também, praticar com as palavras o jogo da sedução. Caso contrário, cai-se na luta mais vã sobre a qual nos falou Drummond – a entressafra. Hoje, atento a essas sutilezas, meu fazer literário me aproxima da lida dos garimpeiros, da magia dos enamorados, do ofício dos tecelões.

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