Cenas de um filme sem imagem
O Correio
Tema: Poder paralelo
Edição: de 4 de junho a 3 de julho de 2001
No tempo da guerra fria, o cineasta soviético André Tarkovsky mostrou-se disposto a asilar-se. Mesmo sem sofrer qualquer condenação ostensiva, enfrentava o desaponto de cartas não respondidas, filmes não exibidos, projetos indefinidos. Farto desse desdém, quis deixar sua terra.
Tarkovsky, vencedor de vários festivais internacionais, desejava somente, por intermédio de seus personagens quase sempre frágeis e líricos, expressar seu pensamento. Jamais admitiu atrelar-se aos preceitos da arte ideologicamente dirigida. Daí a crueldade burocrática, a marginalização e o descaso em relação ao seu trabalho. Também seu desânimo, sua vontade de ir-se embora para outras paragens. Afinal, o desprezo amarga feito fel, machuca, desencanta. Não há como negar o enorme poder da indiferença.
Certa vez, fui por ele subjugado. Muito tempo decorrido, sou capaz, ainda, de experimentar desconforto ao recordar o acontecido. Casa cheia, era período de férias, a garagem virara albergue. Em camas improvisadas, uma penca de primos, todos mais velhos do que eu, pré-adolescente na época, também ali alojado. Um dia, puseram-se a cochichar, a tramar em surdina. Para mim não deram trela. Noite seguinte, somente eu me recolhi no horário habitual. Os primos, só de madrugadinha o fizeram, comentando lances da noitada no bordel. Eufóricos, acabaram por despertar-me. Exaltaram coxas e nádegas, mas a mim não dirigiram a palavra. Foi como se eu ali não estivesse. Desapontado, decidi asilar-me na sala de visitas e para lá transferi meu colchonete. Compreendo perfeitamente a reação do cineasta. Quando era comum, na União Soviética, a perseguição aos artistas inconvenientes ao sistema, com ele aconteceu algo semelhante ao que meus primos fizeram comigo na garagem de minha casa: para os burocratas de plantão, Tarkovsky não existia.