Beijo de língua

Ponto final

Diariamente, Lupércio repassava plurais e coletivos, colocações de pronomes, concordâncias e regências, irregularidades verbais, sujeitos e predicados, coordenações e subordinações. Nas páginas das gramáticas, aprimorava sua porção perdigueira: ao ler um texto, Lupércio farejava falhas.

Num romance, pouco lhe interessava a trama, muito menos o destino dos personagens. Na poesia, desdenhava das rimas e das metáforas. Punha sempre de lado a perspicácia do cronista e a engenhosidade de quem tece um conto. Das notícias dos jornais, quase nada absorvia. O interesse de Lupércio concentrava-se nos erros.

Leda viveu 20 anos casada com Lupércio. Em prol da união, abandonou promissora carreira de jornalista. Não suportava ver o marido apontar deslizes em suas matérias, alguns dos quais apenas ele conseguia perceber. Ainda assim, não se livrou da tirania gramatical. Até nas listas de supermercado o marido “caçava perdizes”.

Lupércio percorria as entranhas de uma gramática recém-lançada quando seu coração sofreu uma espécie de elipse. Ato contínuo, ponto final! Leda deixou escorrer algumas lágrimas sinceras, mas não pôde se livrar da tentação: o epitáfio do falecido marido contém três erros crassos de concordância e dois de regência; falta o acento indicativo de crase onde ele devia estar; onde não devia, lá está ele; por fim, há, na inscrição tumular, total ausência de paralelismo sintático.

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