Ambição do pingo d’água: viagem ao redor de Jacy Pacheco
[…] Um ser inquietante, Jacy Pacheco. Fustigante e fustigado. Dado a rompantes e lirismos, pitos e afagos. Quixote a domar palavras, brandindo versos em lugar de lanças. Para ele a poesia já não possuía mistérios nem segredos. Desvendara-os todos. Bom trovador, ótimo sonetista, exímio nos versos livres, excelente haicaísta. […]
– Páginas 28/29 –
Ao deixar os bancos escolares para enfrentar o balcão da Casa Pratt, Jacy só possuía um paletó e duas calças de brim. Nessa ocasião, havia em Campos um inspetor da Leopoldina conhecido de seu pai, existindo relações de amizade entre as duas famílias de ferroviários. A filha do inspetor vestia-se bem. Tratava Jacy com menosprezo.
— Meu pai é o inspetor. O seu… apenas agente de estação…
No Liceu de Humanidades, onde a jovem estudava, havia um jornalzinho, A Rede, sendo de sua responsabilidade uma coluna de mexericos, na qual se assinava A Tecedeira. Certo dia, ao passar pela Casa Pratt, vislumbrou Jacy metido na sua modesta calça de brim. Não perdoou. Na coluna intitulada Na Berlinda, zombou da roupa de Jacy, enviando-lhe um exemplar do jornal. Na réplica, o primeiro arroubo poético de Jacy Pacheco:
“Tecedeira rica e nobre,
que na rede nada poupas,
és de espírito tão pobre
quanto eu sou pobre e roupas.”
Por iniciativa do poeta Arêas Júnior, que se tornou amigo de Jacy, a trova foi publicada no mesmo jornalzinho. […]
– Página 40 –
Certa noite, pelos idos de 1954, em Niterói, durante uma festa junina, vendiam um folheto mimeografado contendo cinquenta letras de Noel Rosa, cada qual mais crivada de erros. Jacy Pacheco adquiriu o folheto e não gostou do que viu. Na mesma época, em seu trabalho jornalístico, Lou Pacheco, sua irmã, localizara o capitão-médico Hélio Rosa, irmão de Noel, também residindo na então capital fluminense. Apesar da alta qualidade de sua bagagem literomusical, Noel andava deslembrado. Foi então que Jacy disse a Hélio Rosa:
— Salvemos Noel da deturpação e do ostracismo!
Daí surgiu, no ano seguinte, pela editora G. A. Penna, com prefácio de Álvaro Moreira, numa tiragem de cinco mil exemplares, logo esgotada, o livro Noel Rosa e sua época. […]
– Página 98 –
Na década de 1970, já com nove livros publicados, objetivando contornar os problemas de editoração Jacy Pacheco criou o que chamou de Edições Brinquedo. […]
Cinco meses antes de falecer, bastante castigado pelo enfisema pulmonar que o vitimou, o poeta reuniu antigos recortes de jornais, particularmente da década de 1930 (retorno às origens?) e montou Último brinquedo, que não chegou a publicar […]
Na introdução do livro, assim se expressou:
Alô, fiel leitor!
Este preâmbulo, curto, anuncia o fim das Edições Brinquedo. A Pequena antologia poética teve, em 1980, uma tiragem de 1000 volumes. Esgotou-se e foi bem louvada. Musa breve, em 1983, teve 500 exemplares, também divulgados e aplaudidos. Poesia de bolso, em 1985, com meio milheiro de unidades, fez sucesso. Foram três obras, todas com capa de Miguel Coelho. Em 1985, 86 e 88, fiz três edições do Vocabulário em trovas, em xerox, totalizando 400 exemplares. E agora… a última brincadeira… Sem queixas, explico: não saio mais de casa. Como diria o exímio pintor Jordão de Oliveira, em seu poema intitulado Amigos: … “O rio desce. Já diviso o mar…”.
Num clima de prisão domiciliar, vou aceitando a clausura e a ruína física, metafisicamente… e me empenho na feitura deste Último brinquedo. Como alcançar o intento? Vejamos. Guardo comigo, desde 1930, dezenas de jornais e revistas que publicam minhas produções literárias. De tão valiosa hemeroteca retirei, com o auxílio de uma tesoura, farto material em prosa e verso… isso mesmo que o leitor tem nas mãos. Fiz a colagem dos recortes por ordem de datas de publicações. O que se lê aqui, datilografado, é material inédito. […]
– Páginas 145 e 170 –
Observações:
1) Na introdução de Último brinquedo, Jacy Pacheco não mencionou os livros publicados por meio das Edições Brinquedos na década de 1970: Poesias escolhidas(fevereiro/70), Imitação de Cristo (julho/70) e Trovas e sonetos (fevereiro/72)
2) Em entrevista concedida ao Correio Popular, Jacy Pacheco declarou que, em Edições Brinquedo, atuava como autor, prefaciador, impressor, encadernador e ilustrador. E arrematou com fina ironia: “Enfim… um escritor independente. Tudo realizo sem sair de casa…”
3) Jacy Pacheco faleceu no dia 13 de julho de 1989.
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Assim encerrei Ambição do pingo d´água:
Este é um livro pleno de admiração e afeto. Percorrer o itinerário de Jacy Pacheco, mergulhar na intimidade dos papéis que ele colecionou cuidadosamente ao longo de sua existência foi um exercício de emoção e fascínio. Todo o tempo em que, solitário, teci a teia que iria abrigar os apontamentos, recortes e cartas que D. Judith e Heloísa generosamente me ofertaram, foi como se Jacy estivesse ao meu lado, afagando-me com mão de nuvem. Com tal sentimento a embalar-me a inspiração pude percorrer todas as estações. Rico roteiro, o viver e o fazer poético dessa criatura admirável. Chego ao final da jornada com a doce sensação do dever cumprido, de haver prestado o meu tributo a uma pessoa que exerceu em plenitude a condição de ser pensante.
Grande abraço, poeta! Enorme saudade!
Niterói, no derradeiro dia de 1991, quase ao espocar dos foguetes.
– Página 271 –