Águas passadas movem moinhos

O Correio
Tema:
Intercâmbio entre Oriente e Ocidente
Edição:
de 14 a 20 de novembro de 1998

Dia desses, um amigo de meia-idade declarou-me negar-se a retornar às origens. Tendo vivido a infância numa cidadezinha de interior, receia não mais encontrar por lá o coreto de onde os acordes dos violões seresteiros ecoavam em noites de Lua. Teme que as tardes domingueiras não mais abriguem o ir e vir das moças e dos rapazes ao redor da praça, elas numa direção, eles noutra. Desconfia que as charretes tenham deixado de transitar pelas ruas, os cascos dos cavalos faiscando no piso pedregoso. Crê até no asfalto cobrindo as pedras tão antigas. Assusta-se com a hipótese de o sino da matriz não mais anunciar a ave-maria. O rio, provavelmente, não será tão caudaloso quanto lhe parecia. Certamente, já não se compra fiado nas vendas e nos botecos. Um shopping talvez exista… Sendo assim, prefere reter consigo a magia daquele tempo.

Talvez também seja esse o motivo pelo qual um outro amigo, Luís Antônio Pimentel, desconverse ao lhe indagarem se deseja voltar ao Japão. Levado por sua serena inquietude, ele viveu por aquelas bandas dos vinte e cinco aos trinta anos, entre 1937 e 1942. Morou em Tóquio, no aconchego do Arakioko-chô, o bairro das gueixas.

Em 1940, publicou Namida no kioto (Prece de lágrimas), coletânea de poemas, o primeiro livro em língua portuguesa editado em território japonês. Em consequência da II Guerra Mundial, retornou ao Brasil. Parece-me que Pimentel também deseja preservar o fascínio daquele Japão de outrora. Igualmente teme, quero crer, futucar seus longes, embaçar as imagens daqueles tempos em que lhe foi possível descansar à sombra das cerejeiras. Sabe, por certo, que outros valores surgiram na terra de Bashô, muitos dos quais convergem para a Bolsa. Tem ouvido dizer, não duvido, de que por aquelas plagas andam alugando famílias para convívios de fins de semana com idosos solitários. Ouve notícias, sem dúvida, do suicídio de adolescentes em decorrência da competição desenfreada. Diante disso, presumo, prefere não bancar o camicase e vai ficando na Taba de Arariboia. Assim procedendo, não se arrisca a transformar sua cabeça numa Hiroshima, seu coração numa Nagasaki.

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