O bugre da raiz da serra

O Cais
Nº 144
Edição:
dezembro/2004

Manuel Francisco dos Santos nasceu em 1933 num lugarejo do município fluminense de Magé. Naquela época, tudo por lá girava em torno da fábrica de tecidos América Fabril, que construiu as casas dos operários, levou água, luz e esgoto até elas, instalou a escola, o posto médico, a farmácia. A fábrica mandava em tudo, até no destino das pessoas.

Nesse ambiente, veio ao mundo o menino Manuel, com suas pernas tortas, a esquerda arqueada para fora e a direita, para dentro. Logo o apelidaram com o nome de um passarinho marrom, dorso listrado de preto, comedor de insetos e aranhas, inadaptável ao cativeiro.

A essa altura, muitos já terão descoberto. Falo de Garrincha, que por conta do futebol se desvencilhou da fábrica, ganhou notoriedade, sagrou-se duas vezes campeão do mundo, envolveu-se com mulheres diferentes de dona Nair, com quem teve uma penca de filhas.

Garrincha sintetizou a porção índia do brasileiro, esse miscigenado. Curtia a caça e a pesca, lá na raiz da serra, seu torrão natal. Tinha um jeitão indolente, que aqueles que pretenderam marcá-lo sabiam não ser exatamente assim.

No mundial do Chile, a partir da contusão de Pelé, Garrincha, sempre cordial, vestiu o adjetivo com outro uniforme. Deu-lhe a conotação da qual nos falou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, relembrada por Roberto Pompeu de Toledo em texto publicado na revista Veja no da 12 de junho de 2002

“O homem cordial é aquele que, dotado de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante, age e reage sob a influência dominadora do coração. É o boa-praça, o amigo do tapa nas costas, mas que nem por isso se deve confundir com alguém que se rege pela polidez ou civilidade”

Garrincha, lá no Chile, fez de seus pés tacapes, suas pernas de arco lançaram mortíferas flechas em direção às metas adversárias. Chegou a ser expulso de campo, levou pedrada da torcida chilena, jogou para escanteio a candura.

Garrincha era assim, dócil e guerreiro feito os primitivos habitantes da Terra de Santa Cruz. O índio marcava território, ele também o fazia. Seu espaço situava-se na lateral do campo, pelo lado direito do setor ofensivo. Pobre daquele que o invadisse… No futebol atual já não existem Garrinchas. No “violento esporte bretão”, como costumavam dizer alguns locutores, nem todo dia é dia de índio.

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