Os mercadores do caos

O Cais
Nº 55
Edição:
março/1996

Rua Francisco Bicalho, Rio de Janeiro. Dezoito horas, horário de verão. Sol ainda forte, calor sufocante, congestionamento desanimador. Cada metro a conquistar exige paciência e resignação. Estrategicamente, eles agem, os ambulantes. Na lentidão do tráfego, apregoam suas mercadorias.

— Refrigerante, água, cerveja!

Alguns fregueses, saciada a sede, lançam pelas janelas garrafas e latas vazias, que os pneus vão triturando. Na próxima chuva, os detritos entupirão os bueiros, provocarão as enchentes tão conhecidas.

Súbito, cena chapliniana: por entre automóveis, ônibus, caminhões, motocicletas, o camelô persegue a cédula que lhe escapulira das mãos. A caixa de isopor, dependurada no pescoço, dificulta-lhe a ação. Tenta pisar no real. Falta de sorte redobrada, o nó do trânsito afrouxa-se ligeiramente. Um vento abafado, fruto dos veículos em movimento, distancia o real. O ambulante o persegue. Na ânsia de alcançá-lo, parece dançar o xaxado. Alguns parceiros troçam da desdita. Observo-lhes os semblantes e me recordo de um companheiro de trabalho em tempos já distantes. Ao deixar as reuniões, nas quais muito se discutia e pouco se resolvia, sentenciava:

— Ai de nós se isso endireita… Assim devem pensar os mercadores do caos.

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