De relembranças e zombarias

O Cais
Nº 88
Edição:
abril/1999

Dizem que o patrono, dado a bebedeiras, amarrava à cintura uma fieira de periquitos. Assim procedendo, quando emborcava numa sarjeta as avezinhas, em alvoroço, o despertavam. Soube desse fato insólito, não sei se verdade ou lenda, durante a composição do samba-enredo do Bloco Carnavalesco Fagundes Varela.

Na rua que leva o nome do poeta, residi durante a infância e a adolescência. Cheguei por lá antes do asfalto, dos edifícios, do trânsito intenso. Tempo de vizinhança fraterna, de quintais povoados de árvores frutíferas, de terrenos baldios. Naquela época, as calçadas eram também playgrounds.

Em minha meninice, não me aventurava além do topo da rua, jamais percorria o declive em direção a Icaraí. Pouco habitado, o capinzal à margem das calçadas e a precária iluminação davam força ao boato de que, em noites de lua cheia, por aquelas plagas vagava um lobisomem. Sendo assim, para a garotada, a Fagundes Varela restringia-se ao lado do Ingá, tendo por limites o botequim de Noé (na parte baixa) e a chácara dos pais de Tuzeca (na cota mais elevada). Naqueles idos, a rua era reduto de pinguços contumazes e folclóricos. Nesse aspecto, o patrono poderia orgulhar-se deles. Quanto à poesia, Tião Pé Inchado, Oscar Paletó e Chiquinho Mentiroso nada tinham a declamar.

Lembro-me das festas juninas. Do Morro do Caniço retirava-se matéria-prima para as cercas, os arcos, as paredes e coberturas das barraquinhas. Enquanto uns cuidavam de transformar o campinho de peladas em arraial, outros caprichavam nas bandeirinhas, nas lanternas, nos balões, na armação da fogueira. Às mulheres cabia o preparo dos quitutes e das prendas.

As recordações surgem-me fragmentadas, caleidoscópicas: ora me relembro menino, debruçado à mesa do jogo de botão em disputada partida contra Lelé Calçudo, ora me vejo rapazote, ao som da orquestra de Valdir Calmon, nos primeiros ensaios para tornar-me um insatisfatório dançarino. Há momentos em que me pego moleque, a pular carniça na calçada íngreme. Em outros, cabelo emplastrado de brilhantina, flagro-me nos desvãos dos muros a trocar beijos apaixonados com a primeira namorada. Outra lembrança, o pé de cajá-mirim. Quando maduros, seus frutinhos despencavam das alturas sem avisar que o fariam.

A porta da vila, onde nos sentávamos para conversas intermináveis, hoje me parece incapaz de abrigar tanta gente. As casas, mesmo as que já não existem, permanecem intactas em minha memória. Ali naquela varanda, abrigo de casais de namorados, havia, por conta de seus rangidos, um sofá-balanço delator. Onde existia a quitanda do pai de Zezinho e Antônio Azulão, hoje há um bar. No terreno do campinho, ergue-se um edifício. O pé de cajá-mirim foi cortado faz tempo. Em seu lugar brotou uma casa. A rua se iluminou. Evadiu-se o lobisomem. Há trinta e três anos, logo após a morte de meu pai, súbita e prematura, mudei-me da Fagundes Varela, mas jamais a deixei por inteiro. Uma parte de mim ainda a habita. Pula carniça, namora nos desvãos dos muros e no sofá delator, morre de medo do lobisomem, cola bandeirinhas, solta pipa, joga botão, engalfinha-se por um cajá-mirim, frequenta a quitanda de seu José, surrupia mandioca no quintal da chácara do pai de Tuzeca, disputa um “racha” no campinho, participa da linha de passe na calçada. Essa parte de mim, que teima em viver por lá, zomba de minhas rugas, ri-se dos meus achaques.

<< voltar