De quando o radar é capaz de captar afetos
O Cais
Nº 95
Edição: novembro/1999
Nos idos de 1947, dois meninos se conheceram. Um deles, prestes a completar quatro anos. O outro andava pelos quase isso. Como é comum acontecer com garotos nessa faixa etária, brincavam muito e brigavam bastante, quase sempre no corredor da pensão onde residiam, espaço que à época lhes parecia enorme. Ali disputaram inesquecíveis partidas do “gol a gol”. Alheio aos folguedos dos pequenos, o destino os separou (a família do mais velho mudou-se).
Anos mais tarde, deu-se o reencontro. Outra vez a bola funcionou como traço de união: trazido por um amigo comum, o mais velho veio jogar no mesmo time no qual o mais novo atuava. Os meninos esmirrados eram agora adolescentes magricelos. Capazes de melhor definirem sentimentos, concluíram chamar-se amizade o que os levava a fazer as pazes antes mesmo do último tapa quando, no corredor da pensão, chegavam às vias de fato.
Por quase uma década, participaram efetivamente do futebol de areia, tão marcante em Icaraí naquele tempo. A partir de 1966, emaranharam-se no novelo da vida, praticaram o jogo do longe-perto.
Em 1992, organizou-se um reencontro do pessoal do Radar, último campeão da Liga Amadorista de Futebol de Areia (LAFA), extinta em 1965. Muitos não se viam desde então. Foi uma reunião bonita, repleta de fotos amarelecidas e translúcidas lembranças. Os dois amigos lá estiveram, recordaram antigas conversas, reviram outros companheiros, emocionaram-se. O tempo, geralmente tão cruel, também comete benevolências. Amolecer corações, uma delas. Também é capaz de abolir preconceitos. Os homens, por exemplo, quando já não têm que provar macheza, se tornam passíveis de externar afetos, de se abraçar ternamente, de trocar beijos nas faces, de ir às lágrimas sem constrangimentos. Foi assim naquele dia. Os dois meninos ficaram grisalhos. Suas vidas, agora, mais se assemelham ao varal dos cordéis do que aos fios dos novelos. Têm por hábito colecionar amizades. A dos dois vem de longe. Desde 1947, desde sempre!