Independência ou morte!

O Cais
Nº 110
Edição:
junho/2001

Viu, lá adiante, o trânsito congestionado. Não havia como retornar. Foi em frente, na direção do gargalo. Fazia um calor insuportável. Livrou-se do paletó, arregaçou as mangas da camisa, afrouxou o nó da gravata. Ligou o rádio, na esperança de que isso o ajudasse a enfrentar a desordem das ruas. Frustrou-se. Horário eleitoral gratuito ultrapassava os limites de sua paciência. A luta pelo poder! Estava farto de promessas vazias, de discursos demagógicos, da manipulação descarada. Eleitos, esquecem-se dos compromissos da campanha, empurram pela goela do povo o fruto dos conchavos. A ditadora dos poderosos! Vem de séculos, já não representa novidade. Lembrou-se de outra, mais recente: a dos despossuídos, com suas regras e leis peculiares.

No calor do engarrafamento, decidiu-se: não mais permitiria ditarem-lhe o que fazer nem como se comportar. Fosse quem fosse! Meteu a cabeça para fora da janela, bradou a plenos pulmões: “Independência ou morte!”.

O trânsito começou a fluir. Primeiro lentamente, até escoar com desenvoltura. Chegou ao destino e viu a vaga. Finalmente um instante de sorte naquele dia conturbado. Preparava-se para estacionar quando o homem surgiu, brandindo uma flanela ensebada, a boca sem dentes a proferir ordens e instruções: “Mais pra cá, mais pra lá, acerte o jogo, entre de ré, deixe solto, pagamento adiantado…”.

Completou a manobra, saltou, fechou a porta do automóvel. Golpe súbito, imobilizou o outro para depois trancafiá-lo no interior do porta-malas. Em seguida, foi tratar de seus afazeres. Quando voltou, entardecia. Libertou o homem da flanela e disse-lhe: “Você me deve uma grana. Afinal, esteve protegido em boa parte do dia e a cidade anda violenta”. O desinfeliz enfiou a mão no bolso, sacou um maço amarrotado de notas e o repassou sem protestar. Saiu de fininho, ressabiado, massageando o corpo dolorido.

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