Cios & entressafras
Entre cios & entressafras, dou de marceneiro
Tenho sido indagado sobre a forma pela qual se processa, em mim, o ato de escrever. Se brota espontaneamente, se possui hora e local, coisas assim. Começo por dizer que não me devem solicitar escritos, a encomenda me inibe. Não sei se poderia viver de escrever caso fosse obrigado a trabalhos diários. Tenho entressafras. Compensatoriamente, possuo cios literários, quando me enrosco nas pernas da inspiração. Na entressafra, por mais que plante uma ideia, não consigo que vingue. Quando muito, vem mirrada. Já em tempo de cio, uma frase, um gesto, uma ponta de acontecido, um sopro, um lampejo, um pensamento esparso servem de fio à meada. Não possui, porém, tal apetite, duração determinada. Vem desavisado e vai-se sem anunciar. Quando em cio literário, sou cadela despudorada, não escolhendo hora ou local, podendo ser de dia, de noite ou de madrugada, aqui, ali, acolá.
Evidentemente, não consigo elaborar um texto em meio ao sufoco das ruas ou durante uma reunião na qual se decide a forma mais adequada de se distribuir cafezinho. Entretanto, a chispa pode surgir em ocasiões assim e não a deixo escapar. O mais rápido possível, trato de corporificar o tema, sem me descuidar de dar-lhe alma. Afinal, escrito desalmado vem a ser praia sem sol, mulher sem sal, namoro sem beijo, sexo fora de sintonia, futebol sem gol.
Outras vezes, a ideia não faísca, fica hibernando. Belo dia, ágil ou ainda sonolenta, deixa a toca.
Atento ao cotidiano, à tragicomédia da vida, lapidando percepções, assim vou. Entre cios e entressafras.
Alheio às goiabas e às cantigas de roda, o feitor espanta o menino e não se apercebe da brincadeira
Da chácara na qual reside, minha irmã trouxe goiabas, muitas, que colocou sobre a mesa numa bacia de plástico. Mal entrei, respirei infância. Minha meninice cheirava a goiaba madura: goiaba no pé, goiaba no chão, goiaba no tacho, goiaba no bucho. Num repente, lembranças adormecidas trataram de despertar. Fiquei olhando a bacia, os frutos formando um conjunto de bolas amarelas. Aspirei demoradamente enquanto desapertava a forca de seda. Porém, o nó na garganta não se desfez. Estranha, a infância: quanto mais longe mais perto!
Parece um complô: dia seguinte foi a música funcional a futucar meus longes ao desfiar cantigas de roda. Vontade de cirandar, de ir-me pro tororó, já, sem esperar pela madrugada. Ao invés, atendo telefonemas, assino memorandos, abono cartões de ponto. A criança que habita em meus escondidos encolhe-se num canto, qual menino de roça depois de levar um pito. Feitor de mim, o adulto impera. Compenetrado, brinca seriamente de pique-esconde.
De quando o leitor é questionado pelo autor relativamente ao tempo e suas tramoias
O tempo me inquieta. Ora espicha, ora encolhe, é falcão e tartaruga, bálsamo e navalha. Bobeou, cai-se nas suas malhas, quando então é melhor se aquietar, deixar que os fios por si só se destrancem.
Você, leitor, disso o que pensa? Percebe o tempo como um algoz brincalhão? Para você há momentos em que o ontem acontecido exala bafo de múmia, tendo cheiro de cueiro o que se deu faz um tempão? Existem ocasiões em que o tempo voa, quando melhor seria que se arrastasse? Vezes outras, rejeitando ser alado, faz é rastejar? A você ele alivia, mas também provoca talhos e cicatrizes? Já atinou, caro leitor, para mágicos instantes, raríssimos, bom que se diga, em que a distância do passado e a lonjura do futuro convergem para o mesmo ponto? Vivencia, enfim, esse espicha/encolhe? Assimila essa postura do tempo, ora réptil, ora ave de rapina? Sente o seu afago e o fio de sua lâmina? Sendo assim, diga-me lá: consegue digerir, numa boa, essas tramoias do tempo?
Algumas reflexões capazes de embatucar sem causar vexame
Viver é optar: ou isso, ou aquilo. Issoaquilo, assim tudo junto, não dá! Principalmente no plano sentimental. Relacionamentos simultâneos, de aparente efeito multiplicador, quero crer, fazem é dividir. Também, mais subtraem do que podem somar. Assim, aprofundar uma relação que se configure promissora, mantendo uma já existente, grila. Fazê-la abortar, frustra. Sacrificar a antiga, assusta. De qualquer forma, independentemente do posicionamento assumido, sempre haverá um sentimento de perda.
Na simultaneidade, fracionado, aquele que assim se posiciona não se dá por inteiro nem se faz plenamente receptivo. Nessa ausência de plenitude, de inteireza, situa-se a perda. No rompimento da relação já sedimentada pode-se antecipar o que se tem a perder, embora alguma coisa ainda não percebida pudesse acabar aflorando. Quanto a não deixar fluir um novo envolvimento, aí então a perda é do não vivido. Se por um lado atrai, por outro é risco a correr.
Você, leitor, já se viu numa situação assim? De que forma equacionou? Optou pelo simultâneo? Preferiu o já sabido? Decidiu arriscar-se abandonando as pedras do cais para navegar nas águas da incerteza?
De como a relação multiplicadora substitui os hidrocarbonetos e, de quebra, salva a lavoura
Acabo de fazer uma descoberta: fosse o problema apenas de locomoção, podia faltar petróleo! Há um veículo que dispensa o combustível. Também não necessita de álcool hidratado. Utilizando-o em grande escala, há de sobrar açúcar e cachaça, o que traz a esperança de adocicar a vida, além da alternativa de um grande porre. Simples, o veículo, capaz de nos livrar da dependência do hidrocarboneto e da gramínea. Naturalmente já o terão visto a perambular por aí. Curiosos? Pois, muito bem, buscarei defini-lo: possui um chassi de metal formado por tubos soldados entre si, que reúne e sustenta as várias partes, podendo ser horizontal ou curvo o tubo superior; é dotado de pneumáticos de diâmetros iguais; movimenta-se por pressão alternada, sendo a força propulsora transmitida por meio de rodas dentadas envolvidas por uma cadeia de rolamentos, sendo chamada de relação multiplicadora a correspondência entre o número de dentes, podendo ser completada com uma mudança de velocidade a duas ou três relações, bastando que o pinhão compreenda mais rodas dentadas de diâmetros diversos e um mecanismo de guia integrado em um extensor comandado por uma alavanca, que mantém preparada a cadeia, qualquer que seja a relação escolhida; uma das rodas do veículo tem função diretriz; quanto ao sistema de freios, a transmissão de comando até o dispositivo freiante é feita por hastes rígidas ou por intermédio de cabos de aço, que correm entre bainhas metálicas flexíveis, podendo tal dispositivo alojar-se também no cubo central da roda, ocorrendo o comando por conta de pedais; o sistema de iluminação é constituído por um pequeno dínamo, que fornece corrente elétrica ao farol; o dínamo em questão é acionado pelo movimento de uma das rodas. O assento, recoberto de couro ou plástico, compõe-se de uma armação metálica com molas em espiral.
E então, já o identificaram? Creem válido incrementá-lo? Para quem acha que sim, uma notícia alvissareira: dizem que o governo anda pensando em ativar as ciclovias.
Depois de acrisolar, minha amiga risca no mapa um xis e faz fulminantes indagações
Com sua letra miúda, minha amiga diz-me coisas. “Viver é um contínuo recomeço!” – ela exclama. E prossegue: “Se de repente alguma coisa parou de começar pode contar que já morreu. Então um outro estado, uma outra fase, um outro momento começa. Sempre a nos acrisolar, a nos empurrar para frente”.
Saboreio acrisolar, um achado! Fico a imaginar os sentimentos se depurando num crisol invisível, a química do recomeço sendo elaborada em suas múltiplas reações. O processo há de ser bem dosado para que os fantasmas daquilo que tenha perecido não arrastem correntes, a fim de que o novo estado, a nova fase, o momento novo não se deixem assombrar.
Mais adiante, determinada, minha amiga emite outro conceito: “Viver é fazer no mapa um xis e dizer: aqui quero chegar!”.
Aí questiono. Não será mais fascinante percorrer a vida sem mapas, sem fazer da busca a procura do tesouro? Amanhã, o ponto a atingir será aquele que se tinha em mente quando o xis foi traçado?
Enquanto ficam pensando, se é que se prestarão a tanto, vou ao final da carta. Minha meiga amiga me fulmina: “E você, o que busca? Que voz o orienta? Que deus é o seu?”
Não sei, amiga, exatamente o que busco. Minha serena inquietude talvez venha daí. Sei que sigo ao relento, carregando comigo esse meu pensar, justo a voz que me orienta. Quanto ao deus, suspeito de um bruxo indeciso. Alheio ao luxo e à miséria incontida, talvez ele esteja a cozinhar a vida…
Espontânea confissão da morena de olhos de céu nas fraldas da madrugada
O vinho destrava a língua da morena de olhos de céu. Céu de manhã primaveril, fiquem sabendo. Afinal, podem imaginá-los nebulosos quando tal não se dá. Mesmo que entristeçam, não se deixarão turvar, nisso eu aposto. Nos momentos de chispas, ainda aí haverão de se manter límpidos, sou capaz de jurar.
O vinho – eu dizia – solta-lhe a fala. Porém, não lhe tira a lucidez, até pelo contrário. O dizer é sereno. Não há queixumes, mas constatações. “As coisas são como são” – ela afirma. E arremata: “Satisfazem, mas não realizam. É então tratar de aceitá-las e de usufruí-las…”.
Após sorver mais um gole, prossegue. Ouvinte atento, bebo-lhe as palavras. E ela diz: “Comigo tudo morre quando passo a querer. Quando não as desejo, as coisas aí estão, oferecidas. A vida me dá, depois tira. Oferece outra vez. Aí já não quero mais. As sementes que plantei não vingaram!”. (Nem então ela se faz amarga). “Minhas raízes já nasceram todas. Agora sou planta aeróbia. Tentei piano, violão, pintura, belas-artes… De artista só tenho a alma. O resto é vontade e morre aí. Um dia me mando para a França”. Por um instante, vacila: “Pensando bem, não sei se conseguiria viver na França…”.
De repente, a morena de olhos de céu se cala. Fica olhando o vinho como se a taça abrigasse um oceano. Talvez esteja a viajar, nunca se sabe o que se passa na cabeça de quem fita em silêncio uma taça de vinho.
Olho essa mulher frágil/forte, guerreira e menina, feita de ferro e cristal. Penso nos momentos em que, desejando ser cristaleira, dão-lhe bigorna. Vezes outras talvez o contrário aconteça.
O dia ameaça amanhecer. A morena de olhos de céu sorri. Já não há mais vinho em sua taça. Desisto de buscar respostas. Dou-lhe razão: as coisas são como são…
A carranca incorpora a esfinge e a sala vira Tebas
Da estante, entre livros e discos, olhos de bugalho, a carranca parece fitar um ponto qualquer no branco do teto. Tem a boca escancarada, língua de fora, dentes pontiagudos. As narinas insinuam que fareja. Ignoro-lhe a procedência, o tipo de madeira em que foi esculpida, quem a entalhou. Mesmo assim me fascina. Não identifico, de imediato, o que me parece significar. Para tentar descobrir, cravo meus olhos nela, imagino a madeira ganhando forma. Incorporo a satisfação do artista no ato da criação, aspiro o cheiro da árvore, mais forte a cada entalhe imaginário. Sinto o significado ganhar contorno, mas não tenho ainda o sentido exato.
Alheia, a carranca permanece impassível: os mesmos olhos esbugalhados, a mesma boca aberta, os mesmos dentes pontiagudos, língua de fora do mesmo jeito, como a zombar de minha inquietude. “Decifra-me ou te devoro”, talvez dissesse se falar pudesse. O significado está próximo… Não me deixarei devorar… Meu comportamento obstinado não a abala. A bandida não move uma fibra.
Eis que atinjo o objetivo! O significado surge por inteiro, o sentido se faz completo. A carranca simboliza a vida! Boca de abocanhar, língua de zombaria, olhar difuso, farejadora, impassível, inquietante, a exigir decifração, a devorar quem não a decifra. Por tudo isso, e muito mais que não pude captar, fascinante!