Passeio pela obra de Wanderlino
1. Uma poesia fora do umbigo.
Horácio Pacheco, certa vez, caracterizou Wanderlino Teixeira Leite Netto com poucas palavras: “Um poeta pragmático”. Talvez o perspicaz professor, já falecido, aludisse a um aspecto marcante da poesia desse autor – a ausência de sentimentalismos.
1.1. Seus poemas de Chegança (1977), livro de estreia, já demonstram essa vertente de contenção lírica, que se manifesta na preferência por temas reflexivos. Mesmo em poemas que falam de amor, o assunto é tratado a distância: ora reduzido a conceitos (“Conjugação verbal”); ora aprisionado nas malhas da racionalidade, haja vista as construções subordinativas, com predominância de condicionais e causais (“Viu?”, “Perspectiva”, “Da ânsia de se afagar”); ora devidamente domado pelo humor (“Ciranda do amor liberto”, “Conto da carochinha”); ora condensado no mínimo de palavras essenciais (“Sinalização”), num prenúncio de tendência à síntese, que viria a caracterizar seus textos posteriores, em especial os contos.
Muitas vezes, respondendo à célebre pergunta formulada por jovens estudantes sobre o que o levou a escrever, o poeta reconhece que começou a fazer poesia para ter com quem segredar. Essa motivação encontra-se expressa em “Caracol”, ainda de Chegança. Percebe-se nesse primeiro livro um viés de desaponto com possíveis descaminhos de sua vida ou da própria realidade como um todo, o que poderia tê-lo levado a uma literatura de mero desabafo. Mas essa percepção um tanto pessimista não se manifesta em lamentos piegas, não lhe retira o senso crítico: faz com que transforme dor em reflexão filosófica (“Apologia da solidão”, “Filasofando”, “Mea culpa”); leva-o a brincar com os problemas sérios para, pelo humor, distanciar-se deles (“Prótese”); conduz sua voz à denúncia em poemas à maneira de manifestos (“Salvaguarda”, “Feliz ano novo”, “Uma ordem”, “Opção”, “Fórmula 1”). Enfim, por meio da transmutação poética, seu sofrimento pode ser compreendido por todo ser humano.
Esse livro abriga as primeiras reflexões de quem já não tem fantasias a respeito da realidade (“Chegança”) e busca saídas para a angústia de viver (“Enigma”). Ponto alto dessa obra inicial, o texto “Ambivalência” é aquele em que o autor melhor realiza esse confronto com uma vida sem máscaras e paetês. Nele, a competente construção antitética e a mestria no trabalho com a camada fônica da língua elevam Wanderlino ao patamar de verdadeiro poeta e levam sua poesia muito além, portanto, das intenções de simples desabafo. Não por coincidência, também aos jovens que lhe pedem orientação sobre o ato de escrever ele aponta o caminho do trabalho efetivo sobre a mensagem, da reescritura exaustiva, da elaboração consciente, da utilização dos recursos que a língua potencialmente oferece.
Nessa luta pelo distanciamento da subjetividade derramada, o autor não se afasta, contudo, de seu “eu”, presente em vários textos: em “Elegia de encomenda”, o olho curioso do cronista; em “Filigrama”, um espaço para a esperança; em “Recado pro Drummond”, um diálogo intertextual; em “Perdas”, o tópico do ubi sunt revisitado; em “Ocaso”, elementos autobiográficos tornados universais pela operação transformadora da função poética.
1.2. Em 1981, Wanderlino lança Forca de seda, em cuja terceira parte aparecem oito poemas até então inéditos. Em sua maioria, esses textos apresentam uma atmosfera de pessimismo tanto do ponto de vista existencial (“talvez / eu nem devesse ser poeta” – p.93) quanto social (Afinal correr pra quê/ se o final dessa corrida/ dessa briga descabida/ é um beco sem saída?!…” p.- 96)
1.3. Na sua trajetória literária posterior, com Vide versos (1986), coletânea de antigos e novos poemas, outros temas surgem, mas continuam recorrentes os antigos: o desencanto, o desconcerto do mundo, a sensação de aprisionamento e o consequente desejo de liberdade e aventura, o sonho do amor livre de amarras, a frustração com a sociedade, a viagem nostálgica pelo passado… Há momentos de intensa poeticidade: “O homem de la Mancha”, “Anúncio classificado”, “Quebra de sigilo”, “Ao mar, amar”, “Relembrança”, “Vento dos à toas”, “Alquimia”, Noel tropical”, “Palavras para as palavras”, entre outros.
Por todos os poemas desse livro, o mesmo belo trabalho de ourivesaria com o nível sonoro do idioma, por meio de rimas de diversos tipos, aliterações, assonâncias, paronomásias e anáforas; a busca de comparações e metáforas não desgastadas; a presença constante da antítese (na procura de expressão para a duplicidade de valores, sentimentos e ações contraditórios em si e na vida). Exemplo perfeito da utilização de tais recursos encontra-se no já citado “Ambivalência”:
Diante desse tudo
ou desse quase nada
já não sei se volto ao caminhar miúdo
ou solto o pé na estrada
Se desato o laço dessa corda bamba
ou ato o nó na alça da caçamba
Se queimo vida nesse fogo fátuo
ou se de fato tento nova ida
Se afasto o tule dessa nova tela
ou se entulho a talha com esse vinho velho
Se curto o corte dado no baralho
ou meto o manto e me amortalho
Se mato o mito que se mete em mim
ou se me omito e me torno mudo
diante desse nada
ou desse quase tudo
Perpassa o livro, também, fina ironia, lâmina afiada no enfrentamento com a realidade fora. E sempre o uso do verso livre. Palavras suas à época: “(…) Meto-me a metrificar / mas mato a métrica / e o verso se diversifica / Prometo: / nunca mais me meto a fazer soneto” – p.85. Contradizendo-se, o poeta muito tempo depois irá experimentar a forma fixa, conforme será abordado mais adiante. Essas as características formais marcantes de seu texto. O único ponto negativo, de que aos poucos o poeta se libertará, é a inversão um pouco forçada de alguns termos da frase, sem função aparente em alguns momentos, o que provoca uma sensação de artificialismo nos versos em que ocorre.
1.4. Em 1991, com Ìgbàsílè, Wanderlino, na primeira parte, envereda pela poesia engajada sem, entretanto, cair na armadilha da dita “arte” panfletária. Expande o tema da pseudoabolição da escravatura dos negros no Brasil para as muitas outras formas modernas e disfarçadas de escravidão. Na segunda parte, passeia, de forma competente, pelos temas tradicionais da lírica ocidental bem como pelos assuntos quotidianos de sua época, dos quais tanto gosta seu olhar também cronista. Em quase todo esse livro, acentua-se uma tendência cada vez maior à síntese. Chega a redigir minipoemas, com forte carga informativa no mínimo de palavras, quase haicais, tipo de composição que só mais adiante (2009) irá se manifestar de forma plena. Em “Moderna escravatura”, “Poemiserável” e “Causa e efeito 1”, a contenção e a racionalidade sobrepõem-se à emoção fácil.
Ainda em Ìgbàsílè, em autorretratos expressivos, o eu do poeta desnuda a si e a suas intenções existenciais – “(…) preservo o interior e vou demolindo a fachada” – p.69 – e revela o seu caráter reservado – “(…) O ar distante, esse meu jeito” – p.79 (“Poema do habite-se”). Longe está, porém, de fazer uma poesia fria, sem carga emotiva. Ao contrário, seus poemas em geral fustigam, pelo aspecto crítico (“Cem anos de quilombos e favelas”), desmascaram aparências (“Ledo engano”), até mesmo abrem espaço para um fugaz oásis de integração e repouso (“Cantiga do bendizer”). Em “Poemacrítico”, o autor afirma no trecho final: “Enfim, poetar é tratar de estar atento a tudo e não apenas cuidar do conteúdo” – p.61.
1.5. Sempre inquieto e desejoso de experimentar novas e diferentes formas de expressão, em setembro de 2009 Wanderlino trouxe a público Asas na pedra. Nesse livro, dialoga com o haicai, poesia multissecular de origem japonesa. Como acontece nesse tipo de poema, o autor capta instantâneos a partir de uma percepção sensorial (Rompe-se o silêncio. / O som do sino e do galo. / Amanhece o dia.) Mas o poeta não abandona de todo a forma ocidental de apreensão da realidade, baseada na reflexão e na crítica (Pergunta ao Quixote: / — Que fazer sem Rocinante? / — Cavalgar os sonhos.). Desta maneira, seus tercetos têm um tanto de gosto de Oriente, um tanto de sabor de Ocidente. Seus textos não se filiam à vertente de haicais estritamente vinculada à temática das estações do ano. Abordam vários temas não presentes na tradicional linhagem japonesa. Quanto à parte formal, seguem rigorosamente a métrica de 5 – 7 – 5 sílabas poéticas, como pregava o já falecido mestre Luís Antônio Pimentel, com quem Wanderlino manteve estreito contato no movimento cultural da cidade de Niterói (RJ). Mais uma tentativa, portanto, de aclimatação, em nosso País, dessa concisa forma literária nipônica, que há cerca de um século vem encontrando tantos adeptos entre nós.Segundo R. S. Kahlmeyer-Mertens, esse livro “(…) em particular, recorda, com seus haicais, a possibilidade ressignificada de alguns homens: ter as asas da poesia”.
1.6. Com Café pingado, em 2012, Wanderlino atinge a maturidade literária. Nele se aprofunda a consciência de poesia como resultado do trabalho sobre a linguagem, do predomínio da função poética sobre as funções referencial e emotiva.
No nível temático, em todo o livro, forte é a metáfora do “destecer” (“Metamorfose” e “Singeleza”). O eu lírico aparece mais pacificado e faz um balanço de sua personalidade, denotando aceitação de si: “Não me lamento sendo assim: / pleno de raízes” (“O avesso do tecido”); “Permaneço quieto,/ no bojo aconchegante do casulo.” (“Bicho-da-seda”). Encara, com tranquilidade, suas incoerências; não se julgando, abre margem a uma tolerância maior com o ser humano em geral, com sua (dele e do outro) insensatez (“Danos da verdade”). Os paradoxos da vida, que antes eram fonte de angústia e conflito, passam a ser encarados como um molho da existência: “A vida e seus opostos…” (“Sustenidos e bemóis”); “Indubitavelmente, ando adubando o dúbio.” (“Dubiedade”).
Neste Café pingado, em alguns poemas há uma atmosfera de serenidade, rara nos livros anteriores (“Papel de seda, “O curumim”, “Singeleza”, “Cantiga de roda”). Porém, se a pena leve da lira afaga alguns poemas, a lâmina da ironia não foi aposentada em outros (“Tristes estátuas”, “Toque de recolher”). Se algumas angústias antigas bateram asas de sua poesia, novos espantos fazem pouso nos textos recentes, a exemplo da constatação da velhice (“Autorretrato”) e da proximidade da morte (“Ave de mau agouro”). Sem abandonar a reflexão, parte, pragmaticamente como diria mestre Horácio Pacheco, para a ação: “Não me peçam coerência, / ando farto de linearidade”(…) É hora de deixar o cais… e navegar, / lançar ao vento a poeira da cidade.” (“Danos da verdade”). Ainda neste poema o eu revela-se por inteiro em sua nova versão “Darcy, Vinícius, Seixas, Lennon, Amyr”. Ou, para não escapar da assumida ambiguidade existencial camufla-se: “(…) se assim não for / e tudo não passar de ilusão. / Pessoa tem razão: / o poeta é mesmo um fingidor”.
Wanderlino sabe-se em época de colheita, mas não se acomoda ao já plantado, sempre em busca de transformação. Embora predominem versos livres como os praticados no passado, o poeta se permite agora transitar também por formas fixas nunca antes visitadas, a exemplo do soneto, da canção e do madrigal. Em toda a obra recente, permite-se, enfim, a reverência e a iconoclastia, o conflito e a tranquilidade, a postura crítica e o não julgamento, a liberdade e a disciplina.
De permanente em toda a sua obra, da juventude à maturidade, apenas a referida ausência de derramamentos subjetivos, expressa agora de forma explícita:
Mas o poeta deve ter sempre consigo
que a poesia tem um quê de universal.
Nada de atá-la fortemente ao próprio umbigo.
(“Soneto da colheita e da transformação”)
Em “Asas do desejo” (Alemanha, 1987), do cineasta Wim Wenders, quando um dos anjos resolve experimentar as sensações dos seres humanos, uma de suas primeiras ações é sorver prazerosamente um cafezinho. Neste Café pingado, assim como no filme, o homem e suas questões existenciais são a bebida que o autor oferece para o prazer do leitor. Constituem o centro das preocupações de Wanderlino, poeta eminentemente reflexivo. É tomar gole a gole cada verso desta poesia e sentir o quente sabor de nossa humanidade.
Obs.: Alguns poemas de Café pingado podem ser lidos neste site.
1.7. No fim de 2017, antenado com as novas formas de veiculação de obras para além daquelas impressas em papel, Wanderlino Teixeira Leite Netto resolveu trazer a público o segundo trabalho de sua autoria postado em seu site na internet. O primeiro, em prosa, havia sido Pessoas, com projeto visual de Leonardo Barbosa. O segundo – Poemas de penumbra e claridade –, apresentando concepção visual desse mesmo designer, consta de textos da fase de maturidade existencial e artística do autor, que agora, mais do que nunca, concebe a vida em seus extremos, que se tocam, se completam, se alternam, num movimento contínuo, ying e yang, dor e prazer, calmaria e tempestade, morte e vida, sombra e luz… Percebe-se, nesse livro digital, uma estrutura circular. Inicia-se com um poema que traz a recordação dos antepassados – os avós. Vai terminando com a lembrança dos pais e, no derradeiro texto, ainda uma vez, a dos avós. Não seria simples coincidência o fato de que, no instante da concepção do livro, o autor tenha recebido a notícia de que sua filha iria tornar-se mãe. Passa ele mesmo, então, a vivenciar essa nova condição de desdobrar-se em novos galhos, de frutificar-se, de tornar-se o avô (o que veio antes), o que agora se eterniza no neto (o que veio depois). Nesse último poema, à maneira de Proust, uma sensação – aqui não o sabor do chá e da madeleine, mas o aroma do doce de goiaba – serve de gatilho poético para fazer aflorar a memória. E o poeta deixa, ao fim da leitura do livro, um gosto de algo em suspensão. Como a própria vida? Uma humilde constatação do grande enigma?
Sem mais nem menos… / surgiu do nada o aroma de goiabada, / doce recordação da casa dos avós. / Há certas coisas sem explicação/ Melhor não tentar desatar seus nós.
(“Sem mais nem menos”)
Recheando essa estrutura circular, poemas reflexivos, em sua maioria, que abordam a vida desse neto, filho, pai, avô… a vida de todos nós, enfim, em toda sua força e explosão, expressa em seus temas eternos: a fugacidade do tempo (a infância, a juventude, a vida adulta, a velhice, a morte), as dúvidas existenciais, a saudade do passado, as inquietações do presente, a natureza com seus contrastes, a consciência da finitude e as tentativas de resistência ao sentimento de angústia que essa percepção alimenta… Como nas obras anteriores de Wanderlino (tanto na poesia quanto nas crônicas), sobressai o observador do mundo e da vida, que não se limita a exprimir sobre eles sentimentos e sensações, mas que pensa, questiona, critica, contesta, ironiza… e não raro conduz o leitor a também fazê-lo, lançando mão de textos em que predominam perguntas em lugar de afirmativas.
(…) Quantos segredos guarda debaixo dos panos / quem passa com pressa pelas quebradas das calçadas?
(“Indagações”)(…) Quantas partidas irás presenciar / antes que te caiba desvendar / os escondidos desse atroz mistério?
(“Contagem regressiva”)Que tal tomar caldo de cana em taça de cristal / e ir, só de avental, à posse do imortal?
(“Poeminho arteiro”)
Conforme já afirmei, este livro é todo construído em cima de dois polos intercambiantes, interpenetrantes.
Na casa dos avós, / aprendi que vida é ambiguidade: / penumbra e claridade.
(“Chiaroscuro”)
Em um primeiro momento, os poemas expressam, com mais evidência, as ambiguidades do mundo e da vida. Muitos dos próprios títulos exprimem essa dualidade: “Chiaroescuro”; “As duas faces da moeda”; “Cara ou coroa”; “Ferro e pluma”; “Placidez e turbulência”…
O marulho da maré, / o pio das aves, / sons distantes e suaves. / Dissonantes, longe de obter louvores, / o barulho das buzinas, o ronco dos motores.
(“Acordes fora do tom”)
Em um segundo momento, predominam textos mais sombrios – forças de Thanatos – em que afloram perplexidades, sentimentos de melancolia, angústia, desaponto, desamparo, sensação de cansaço, vontade de desistência, insatisfação crítica com a cidade e suas transformações, desejos de um retorno impossível ao passado, saudade doída dos que se foram, o encontro com a Morte nas muitas mortes…
Há sempre algo de tocaia / e armadilhas e areias movediças / e o som da vaia./ Há um vento arrevesado a infiltrar-se nas treliças / e aves agourentas no telhado. / Para tudo existe um preço, uma cobrança. / A esperança, contrariando o ditado, / vem morrendo no começo.
(“Poema plúmbeo”)
Aos poucos, vai-se infiltrando no livro uma réstia de claridade, estreita passagem para uma terceira parte do livro, que dá espaço às forças de Eros. Os poemas começam a retratar a leveza, a doçura, o amor, a esperança, o desejo de liberdade, a ternura, a saudade suave, o saudável humor, a aceitação, a busca de saída… Poderíamos situar como poemas para essa transição “A rua de minha infância” e “Poeminho arteiro”. O primeiro, pleno de nostalgia, assim conclui:
A rua da minha infância, / pela qual tenho apreço, / mudou de endereço. /Agora mora dentro de mim.
O segundo, repleto de suave irreverência, anuncia:
Vou plantar avencas no asfalto. / Num salto, colherei estrelas em pencas. / Pretendo ir ao céu / tocar banjo para o anjo Gabriel.
Se no segundo bloco, no poema “Bravata”, o poeta já desafiava seus temores (Ainda assim, não me entrego. / Carrego comigo um chicote e uma faca de corte.), no terceiro, em “Operação resgate”, ele já assume uma luta clara de resistência às sombras: Existe nisso um compromisso: / não me transformar num traste amargo e triste.
Eis o criador constante de si mesmo e da poesia. Esse observador atento, arguto, sabe que tudo – a natureza com seus contrastes, frequentemente animizada nos poemas, refletindo a subjetividade do eu lírico; os seres humanos com suas ambiguidades, suas fraquezas e fortalezas; a urbe, com seus caminhos e descaminhos – tudo pode ser transformado pela mão libertadora da arte.
O sol, que a tudo assiste, aquece a cena, / pequena mostra do tanto que existe / à mercê da pena do poeta.
(“Matéria-prima”)
Que o leitor desfrute da poesia de Wanderlino, sempre tão fértil em imagens de extrema beleza e rica em sonoridade. Que transite entre a penumbra e a claridade, sinta as dores e os prazeres de existir. Que, junto do autor, nos atos de criação e recriação pela leitura, também “invente auroras”.
… este poeta de setenta inventa auroras.
(“Contraste”)
(O livro está disponível na página “Obras”)
1.8. Os anos 2020 e 2021 serão considerados, no futuro, períodos dos mais desafiantes da História da humanidade. A pandemia de Covid-19 ceifou vidas, empregos, esperanças… Trouxe medos, incertezas, distanciamentos… Com ela, entretanto, nos sentimos sacudidos pela necessidade de sair do já conhecido… Todos se viram impelidos a rever valores, buscar soluções para múltiplos problemas, encontrar a liberdade dentro de si mesmos, vestir um pouco a dor do outro, abraçar e beijar em pensamento…
A peste esfregou em nossa cara humana (algumas tantas vezes desumana) nossa pequenez, nossa fragilidade, nossa precariedade… Cada qual, a seu modo, se viu obrigado a pensar na Vida e na Morte, no Tudo e no Nada, no Talvez e na Certeza, na Infância e na Velhice… Voltamos a contemplar com mais atenção a Natureza, a perceber que não somos donos dela, mas sim parte integrante dela. As grandes e eternas questões universais saltaram das páginas dos livros de Filosofia para nosso dia a dia repleto de tarefas, álcool gel, dúvidas, temores… Para tantos, a falta de comida constituiu uma realidade dolorosa. A todos a quem não afligiu a fome física, assaltou a fome da busca de sentido, de transformação da perplexidade em atos de criação. Reflexão e Arte, como sempre, alimentaram nossos sentidos, sentimentos, pensamentos.
A Covid retirou de muitas pessoas, entre outros prazeres, as sensações do paladar na língua de comer. Entretanto a língua da Poesia pôde resgatar as sensações díspares de nossas múltiplas vivências. Vários poetas se reinventaram nesse período, superando as adversidades. Wanderlino Teixeira Leite Netto, criando e recriando-se, entre faxinas, desinfecção de compras e encontros virtuais com seus entes queridos, encontrou tempo para organização e publicação digital, em setembro de 2021, de mais um trabalho poético – Pimentas e Caramelos – no esforço de não perder os sabores da Vida nesses anos amargos.
Poemeto em tempo de pandemia
À procura de um alento
que me faça suportar o isolamento,
mal acordo, ainda bem cedo,
vou olhar as andorinhas
num belo balé alado
rente à copa do arvoredo.
Entre poemas com ardor de pimenta, que tratam de difíceis questões de cunho ora existencial (Côncavo e convexo; Epitáfio…), ora social (Cena urbana; Espectador…), o autor também transita por poemas com doçura de caramelo, líricos (Ciranda de outroras; Ateliê a céu aberto…), verdadeiras odes à simplicidade desejada para o presente e o futuro (Louvação às minudências; Água mansa de regato…).
O escritor dá continuidade a ideias expressas no livro digital anterior – Poemas de penumbra e claridade. Concebe a vida em seus extremos, que se opõem, se tocam, se completam, se alternam, num movimento contínuo. Para tanto, lança mão frequentemente de antíteses e conjunções alternativas. Mesmo alguns títulos reforçam essas oposições (Pimentas e caramelos, Dicotomia, Buquê em branco e preto, Côncavo e convexo, Semeadura e colheita, Cara e coroa).
Aos 78 anos, Wanderlino aciona muitas vezes a memória para um encontro afetivo com a vida vivida, em seus bons e maus momentos. Eis o texto que abre o livro:
Pimentas e caramelos
Carrego comigo um pote de lembranças
que às vezes se derramam sobre a mesa.
Essas coisas todas que já foram antes,
nos bons momentos e nas crises,
têm dois matizes:
ora lembram crianças brincantes,
ora mostram cicatrizes.
São desse jeito: leveza e nó no peito.
Mergulhando no passado, ele reflete sobre as vivências do que agora é só lembrança e traz para seu presente os entes mais queridos (Evocação, Viagem à fazenda de meu avô…). A saudade torna-se tema recorrente e algumas vezes aparece sob o tópico literário – universal e eterno – do “ubi sunt?”.
Rua nua
Onde os tico-ticos, os pardais,
os amplos quintais, os pirilampos?
Por onde andará o perfume de jasmim
do jardim que já não há?
A infância e a juventude são tratadas como tempos idílicos. O homem idoso de hoje, tomado de nostalgia, procura abrigo no menino de ontem.
Poema da esperança vã
Quando percorro em pensamento minha infância,
surge-me a ânsia de voltar no lá atrás,
pedir socorro a um alguém que não sou mais.
Sentimentos de melancolia doce percorrem o livro. Saudade, solidão, tédio, crise, abandono, desamor, tristeza, inclemência do Tempo, velhice, morte, desgosto, entre outros temas desse matiz, reforçam o lado precário da existência ressaltado pelo poeta. Em vários textos, a própria Natureza reflete esse estado de espírito:
Monotonia
Em dias assim,
de nuvens cinzentas,
as horas passam lentas.
Feito tinta de tatuagem,
grudam em mim.
Dias assim,
de nuvens cinzentas,
são viagem que não tem fim.
Porém o eu lírico logo busca resistir, ora expressando seus próprios sentimentos de pacificação com a vida, ora dirigindo-se a um possível interlocutor/leitor que, no fundo, pode ser o próprio eu:
Simples assim
O cheiro de jasmim do jardim do vizinho,
um gole de vinho em fim de tarde,
um gesto de carinho…
Gosto do que ocorre sem alarde.
Descerrando a cortina
Não se lamente pelo dia enfarruscado.
Ponha de lado a postura ranzinza,
olhe o céu com olhos de ternura.
Existe algo mais por trás do cinza.
Também nessa vertente a Natureza se apresenta. Mas agora como companheira, cúmplice, apaziguadora do espírito do poeta. Em seu louvor ele pinta belas metáforas e personificações. A ela dirige versos de lirismo a um tempo simples e profundo:
Louvação às minudências
Borboletas ensaiam um balé alado,
um gato com enfado se espreguiça,
um raio de sol se infiltra na treliça,
uma enxada atiça o ventre da terra.
Ergo um brinde à Natureza,
à sutileza que o momento encerra.
Lá pelas bandas do sítio
Há sinais de paz
nos olhos mansos dos animais
que a tarde tange no pasto verde e vasto.
Pimentas e caramelos traz, enfim, as marcas do poeta mergulhado em tempos de crise mundial e individual, confrontado com a evidência da fragilidade humana. Daí as idas e vindas ao passado, mas tentando fruir o momento presente, que, sabe bem, é fugaz.
Carpe diem
Melhor não acampar nas cercanias do passado.
Também não me aventuro a navegar nas águas do futuro.
Esse leva e traz a mim não satisfaz.
Talvez seja melhor assim:
viver o presente e nada mais.
No poema Cara e coroa, os três últimos versos remetem a uma leitura ambígua, interessante. A palavra “verso”, citada no fim, possui um duplo sentido, mostrando que a poesia é sempre necessária, principalmente em momentos como esses vividos em 2020/2021.
Atente para o avesso:
olhe a vida de frente,
mas não descarte o verso.
Ressalte-se o estilo de Wanderlino, sempre conciso, contido, com poemas curtos, nos quais só permanece o essencial. Pela leitura, silenciosa ou em voz alta, percebe-se o artesanato verbal, o cuidado com a escolha das palavras, a construção de belas metáforas, a composição sonora pautada em rimas que se vão entrelaçando nos versos.
E não se pode deixar de elogiar a bonita programação visual de Leonardo Barbosa. Com a escolha de cores quentes, vibrantes, alegres, oferece o contraponto necessário ao tom docemente nostálgico do livro. A pimenta emoldurando o caramelo. Ou justo o contrário?…
(O livro está disponível na página “Obras”)
1.9. Ano de 2024. O mundo ainda perplexo pela passagem recente de avassaladora pandemia, que ceifou milhões de vidas. Um mundo conturbado por guerras, que mostram suas garras em tempo real pelas mídias contemporâneas. A realidade tensionada por ódios, violências, preconceitos, intolerância, sectarismo, que pareciam já sepultados, mas se revelaram apenas adormecidos. Uma realidade ambígua, que confunde os limites entre o falso e o verdadeiro, o natural e o artificial, o superficial e o profundo. Uma vida em que os valores se embaralham, forjados pelas novas tecnologias, em que o tempo não nos dá tempo de assimilar as novidades, em segundos obsoletas. Uma vida pobre, de riquezas mal distribuídas, em que a miséria mendiga em cada esquina…
Wanderlino Teixeira Leite Netto a tudo isso observa do alto de seus 80 anos. Questionador, que sempre foi, do que costuma chamar de “nossa civilização falida”, neste ano ele aparenta certo cansaço e um sutil desejo de refúgio em uma poesia avessa a críticas. Não busca engajamento político ou social pela literatura. Constata as contradições, aponta-as, mas não se insurge contra elas. Assim se expressa em seu mais recente livro, De pétalas e rimas (37 poemas), publicado em seu site:
Não faço versos feito quem lança dardos. / Meus poemas não são petardos. // São acordes de uma canção. / Aves de arribação. (Profissão de fé)
Logo no primeiro texto, a figura do poeta aparece metaforizada de forma delicada:
Esteta, fiel a seus pendores, / o poeta jardineiro / semeia versos e flores. (De pétalas e rimas)
Título e poema já dão o tom de mais leveza da nova obra. Leveza, contudo, que não se confunde com falta de profundidade existencial. Uma doçura, até certo ponto resignada, convive com um travo de melancolia perante os paradoxos da nossa existência, elementos estes que desde sempre estiveram presentes em seus trabalhos tanto em verso quanto em prosa:
A Vida passa em descompasso. / Lenta e veloz, / suave e atroz / carente de abraço / e avessa ao afeto. // a Vida ora abriga, / ora é sem teto. / É cantiga de roda / e roda de fogo. // A Vida afaga e afoga. (Pingue-pongue)
A esta altura de sua caminhada, talvez por não se julgar mais capaz de interferir nos rumos da realidade, neste livro Wanderlino algumas vezes se abriga no sonho. Durante o sono, recorda-se de um passado ameno, o que lhe traz alívio:
Tenho um sonho recorrente. / Nele habitam jardins e pomares. / Noite dessas, aspirei aroma de jasmins, armei rede em frente ao pé de manga, / aproveitei inteiramente o ir e vir. // Ao acordar já não havia a inútil zanga / com a qual fora dormir. (Poema onírico)
Reforçam essa atmosfera de sonho, de lembranças, as imagens um tanto surreais, oníricas, colocadas pelo sensível designer Leonardo Barbosa para ilustrar a capa e as partes do livro.
Viagens sentimentais ao seu passado são recorrentes nesta obra do escritor. O poema Passeio pelo ontem constitui um bom exemplo. Em todo o livro, o eu lírico corresponde mesmo ao eu do poeta. Ele cita, de forma constante, fases e referenciais de sua trajetória: a infância; a iniciação nas letras pela primeira cartilha; a adolescência; os amigos que já partiram; as musas de antigamente; as inquietações da vida adulta; a existência pregressa em uma urbe mais amigável que a de hoje… Saudade… Nostalgia…
No presente, a constatação da proximidade do fim de sua jornada. O “fino fio frágil alinhavando a vida”. As contradições em si e no mundo, expressas por antíteses e conjunções alternativas, que permeiam vários de seus concisos poemas, alguns deles com títulos que sugerem esses antagonismos. Mas, no momento atual, existe também um espaço lírico de descanso, um “canto do afeto”, com a presença amorosa da mãe já falecida e uma alusão ao amor discreto com a companheira. Também um canto aos netos. Nestes, a certeza da continuidade:
[…] Novo ponto de partida. / Água clara no vau da vida. (Cantiga da esperança)
A Natureza, quando aparece nos textos, vem ligada a recordações sinestésicas do passado ou diretamente vinculada à subjetividade do escritor no hoje. O exterior refletindo o interior:
Em algumas manhãs invernais, / por mais que eu busque ensolarar o dia, / existe um gosto de nostalgia / na brisa fria que se enrosca no meu rosto. (Neblina)
Todos esses temas constituem as pétalas que o poeta jardineiro transforma em rimas neste livro. Rimas e jogos de palavras, recursos poéticos que transmitem musicalidade à linguagem do autor.
Wanderlino, pessoa que chega aos 80 com realizações e sucessos nas áreas profissional e literária, nesta nova idade tenta reformular-se, procurando agora as minudências, os detalhes, a simplicidade, o cultivo das flores essenciais, a descoberta de um ouro mais puro:
Já não me vejo a almejar inúteis relevâncias. / Prefiro garimpar desimportâncias. (Sob nova direção)
Ser sempre em busca de compreender-se, lança mão mais uma vez do fazer poético para revelar-se a si próprio:
Na data do aniversário, nenhuma farra. / Esqueçam a fanfarra e a festança. / … / Apenas um encontro comigo mesmo / para que não fiquem vagando a esmo, / no tempo que se dilui, / esses tantos que já fui. (Reencontro)
Ser sensível, se ressente do mundo em desarmonia, que se agita em descompasso e nos oprime. Mas envia ao leitor um conselho de pacificação no fim do livro:
Quando se vislumbra a derradeira curva da estrada, / fim da jornada, / uma penumbra turva a tarde. // Abaixe então a guarda. / Por conta do que não tarda, / descarte mágoas, dissabores e rancores. (Passando a limpo)
Assim como todo ser humano, Wanderlino Teixeira Leite Netto tem consciência da finitude, tema central deste livro. Porém tenta superar a dor da angústia que essa condição nos traz, continuando a fazer a poesia reflexiva que há muito cria com grande sensibilidade:
Virar semente, / germinar em certo instante, florescer mais adiante. // Já que não pode ser assim, planto versos no jardim. (Jardinagem)
(O livro está disponível na página “Obras”)
Referências bibliográficas:
1. | LEITE NETTO, Wanderlino Teixeira. Chegança – poemas. Rio de Janeiro, RJ, Edição do autor, 1977. |
2. | ______________________________. Forca de seda – crônicas, poemas e uma narrativa em torno da poesia de Carlos Drummond de Andrade. – Rio de Janeiro. RJ, Edição do autor, 1981. |
3. | ______________________________. Vide versos – poemas revistos e novos poemas. Rio de Janeiro, RJ, Shogun Editora e Arte, 1986. |
4. | ______________________________. Ìgbàsilè – poemas para Anastácia & outros poemas. Niterói, RJ, Clube de Literatura Cromos, 1991. |
5. | ______________________________. Asas na pedra – haicais. Rio de Janeiro, RJ, Editoração Ltda., 2009. |
6. | ______________________________. Café pingado – poemas. Niterói, RJ. Edições Muiraquitã. 2012. |
7. | ______________________________. Poemas de penumbra e claridade. Niterói, RJ. Publicação na internet <www.wanderlinoteixeira.com.br>, 2017. |
8. | ______________________________. Pimentas e caramelos – poemas. Rio de Janeiro, RJ. Publicação na internet <www.wanderlinoteixeira.com.br>, 2021. |
9. | ______________________________. De pétalas e Rimas – poemas. Niterói, RJ. Publicação na internet <www.wanderlinoteixeira.com.br>, 2024. |