Noturno em mi bemol & outros contos ligeiros

Noturno em mi bemol

Dedicava-se meticulosamente às escalas. Quatro horas diárias de exercícios. Pulsos doloridos, dores nas costas, pernas dormentes. Cumpriria o vaticínio dos pais, haveria de brilhar nos salões. Nos encontros familiares, todos queriam ouvi-la tocar. O pai sorria, a mãe exultava, enquanto a menina prodígio ia abortando a infância.

A pequena crescia em idade e elogios. Começava a luzir, mas não como os pais prenunciavam. Às partituras amarelecidas, mil vezes o dedilhar mais solto do teclado.

“Música popular, ora onde já se viu! Nada das deturpações desses ritmos desvirtuados, mas a escala, a precisão, o compasso!”.

E foi assim que o piano de verniz marrom, que lhe abocanhara infância e adolescência, transformou-se em sorrateira ameaça pressentida, ocupando incomodamente a sala.

Ao casar-se, a oportunidade de ver-se livre do monstro de teclas. Alertou que não passaria pela porta nem caberia no elevador. A mãe insistiu para que o levasse e ela não soube dizer não. Saiu pela janela, dependurado. Ficou um bom tempo na calçada, ostentando o lombo escuro.

No apartamento novo, nem pela janela entraria. Passou dias na garagem do prédio, disputando lugar com os automóveis, à espera de quem viesse desmontá-lo.

A casa da jovem nubente fora planejada despojadamente. Estante de tijolos, almofadas pelo chão… Onde o piano? Num lampejo, a solução: pintá-lo de vermelho. Desconotá-lo. Retirá-lo do contexto. Redescobri-lo como objeto, dar-lhe outras funções.

O pintor levou tempo desconotando. Primeiramente lixou. A cobra muda de pele! À primeira demão, laivos marrons resistem. Na tarde do sétimo dia, deu o trabalho por findo. Afinal desconotado! Não será mais aberto, suas teclas permanecerão mudas. Terá função decorativa, adequada ao novo apartamento. Sepultará em seu bojo a infância não vivida, a adolescência capenga, a genialidade que não vingou.

Inicialmente foi assim. Depois, mesmo mudo, era presença gritante na sala pequena. Desviava os olhos ao entrar em casa, mas ele estava lá, incomodamente rubro.

O marido não compartilhava dos seus temores. Zombava daquilo que apenas ela pressentia. Certa noite, ao regressar do trabalho, tentou abrir a porta. Inútil. Algo o impedia. Conseguiu livrar um vão. E viu: a sala inteira tomada por ele, domada pela sua força. O bicho enorme, papão.

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