Após haver visitado Portugal, escrevi 12 pequenos textos alusivos a essas andanças turísticas. Tais escritos, um passeio literário por mares até então nunca dantes por mim navegados, foram publicados em O Cais em revista, veículo de comunicação (já extinto) editado por Paulo Roberto Cecchetti. Convido o leitor a munir-se de sextante e astrolábio imaginários e embarcar nessa viagem.
Leia aqui esses textos:
Nau capitânia /
Em 1998, Portugal sediou uma exposição internacional, a Expo/98. Para abrigar os pavilhões dos países participantes, construiu-se na capital, às margens do Tejo, o Parque das Nações. Em suas adjacências, surgiu uma Lisboa moderna. Do topo da Torre Vasco da Gama, erguida no interior do parque, percebe-se a distinção: o novo e o antigo delimitam-se nitidamente. Feito água e azeite, não se misturam. Ainda assim, são ingredientes do mesmo tacho.
Vale a pena percorrer as ruas de Lisboa, sempre airosa, principalmente se a alma de quem o faz não é pequena. Certamente, o caminhante acabará por encontrar Fernando Pessoa, terno bem talhado a lhe cobrir o corpo magro, o inseparável chapéu cuidadosamente aprumado. Também topará com Camões, postura épica, quase junto a Pessoa. Bem próximo aos dois, há de estar Antônio Ribeiro Chiado, o homem da rua, improvisador de versos, envolto num hábito clerical, apesar de nunca haver sido ordenado sacerdote. Não me imaginem entregue às vascas do delírio, tenho plena certeza do que digo. Os três poetas lá estão, estátuas em quietude póstuma.
Primeira caravela
Do alto de um morro, em Lisboa, a muralha se destaca. Suba até junto dela e você chegará às ruínas do Castelo de São Jorge. De lá, uma vista fantástica se descortina: o casario secular, o Tejo, o moderno do Parque das Nações, toda a cidade, enfim, à mercê do seu olhar. Prossiga por uma alameda arborizada. Pelo caminho, encontrará pedras esparsas, canhões, pórticos e, em frente a um restaurante, pequenas estátuas de leões. Penetre então no castelo, ou seja, no interior de suas paredes de pedra, pois teto já não há.
Quando lá estive, havia uma exposição do belga Jean Michel Folon, A alameda do pensamento, baseada em Fernando Pessoa. A respeito dela, dizia o artista: “Pessoa passeia entre as minhas esculturas no Castelo de São Jorge. Ele observa uma escultura que o olha. Têm o mesmo chapéu. Têm o mesmo casaco. Falam-se em silêncio”.
São vários Pessoas (ele e seus heterônimos?), a mesma postura, mãos às costas, o mesmo terno bem vincado. Embora o autor dissesse que todas tinham o mesmo chapéu, não havia chapéu propriamente nem sequer existia rosto. Em seus lugares, um violão, um garfo, um sino, um ponto de interrogação, uma entreaberta maleta.
No mesmo local, ao entardecer, é comum encontrar-se alguém ao violão ou entregue a um instrumento de sopro. A brisa amena, uma nesga de Sol na muralha, a música, as silhuetas magras de umas poucas árvores, tudo empresta aconchego ao lugar.
Por fim, suba alguns degraus, íngremes e estreitos, e chegará ao topo, onde torres, ameias e uma tremulante bandeira de Portugal se destacam.
Ao retornar das ruínas do Castelo de São Jorge, pode ser que você tenha aprendido a falar-se em silêncio. Conforme se falam Pessoa e as esculturas de Folon.
Segunda caravela
Até o século XVIII, o mar cobria toda a praia e a área hoje ocupada pela Vila de Nazaré. Vai daí, naquela época, as pessoas habitavam o cimo do Promontório do Sítio e a localidade de Pederneira.
Hoje, na praia da Vila, que o recuo das águas fez surgir, enfileiram-se pequenas barracas e toldos, abrigos de veranistas, além de barcos bojudos, fundo achatado, proa bastante aguda. Há também por lá os paneiros, estrados nos quais as mulheres põem a secar carapaus e cações. E pescadores costurando redes, alinhavando histórias da faina da pesca.
Os homens de Nazaré, quase sempre de pés descalços, costumam vestir camisa xadrez e cobrir a cabeça com um barrete preto. Já as mulheres, ou se metem na roda de suas sete saias, ou choram, de negro, pelos pais, maridos e filhos que o mar levou.
A respeito das sete saias, diz-se que, por não saberem contar, as mulheres passaram a usá-las como forma de calcular o retorno de seus homens, que se enfiavam no mar por uma semana. Cada dia transcorrido, uma saia a menos. Assim, marcavam a passagem do tempo. De quebra, desnudavam-se gradativamente, ávidas por impregnar em seus corpos o cheiro de maresia.
Terceira caravela
Naquela tarde, o céu de Fátima despejava-lhe uma chuva persistente, incomodativa. Ainda assim, nas proximidades do santuário, o movimento era intenso. Estatuetas, broches, calendários, pratos decorados, chaveiros, canetas e muitas outras lembrancinhas migravam das prateleiras das lojas para as bolsas dos forasteiros, gerando lucro para os bolsos dos comerciantes. Alguns fiéis, como se fossem cavaleiros da Távola Redonda, empunhavam velas compridíssimas.
Alheia ao consumismo, apontando na direção do infinito, a torre do santuário, uma cruz no topo, parecia espetar um colchão de chumbo. Quando em vez, os sinos badalavam e o som ecoava até se perder nas lonjuras. No comércio, tudo era agitação. No interior da igreja, porém, pairava um silêncio respeitoso. Apenas a sonoridade litúrgica se fazia ouvir. O altar, o vinho, o pão, os paramentos, as vozes da ladainha, os cochichos do confessionário, as beatas, o ajoelha-senta-levanta, o olhar vago dos santos. Dão-me o que pensar essas coisas do templo…
Quarta caravela
Faz tempo, nem me recordo quanto, estando na cidade paulista de Santos, a serviço, decidi visitar doutor Celso e dona Maria, padrinhos de uma de minhas irmãs, e levei comigo um colega de trabalho. Conforme combinado na véspera, por telefone, apertei a campainha da residência do casal às 20 horas. Um imprevisto detivera doutor Celso em seu escritório. Enquanto aguardávamos sua chegada, dona Maria, gentil como sempre, providenciou uma garrafa de vinho e ficamos a beber e conversar.
Meu amigo, afeito aos embates etílicos, logo percebeu o engano. Para não causar constrangimento à anfitriã, calou-se. Bebemos do vinho em goles generosos. Repentinamente, um torpor se apossou de nós. Ao chegar, doutor Celso encontrou-nos tentando domar o riso e dar à prosa um rumo coerente. Dona Maria abrira um legítimo vinho do Porto, recomendado como aperitivo ou à sobremesa. Em virtude de seu elevado teor alcoólico, um cálice apenas, não mais que isso.
Portanto, saibam os desavisados: o Porto é um vinho enganador. Acima da dosagem recomendada embriaga sem aviso prévio. Sua história, diga-se de passagem, prima pela desfaçatez. Afinal, coube aos ingleses fabricá-lo inicialmente e não aos portugueses. As uvas, por sua vez, origem de tudo, não são plantadas no Porto, mas no Vale do Minho. Também as caves, onde se armazena o vinho em pipas e barris de carvalho por até quarenta anos, não se situam na cidade que empresta o nome à bebida, mas defronte, em Vila Nova de Gaia, localizada na margem oposta do Rio Douro. Cautela, pois. Esse tal vinho do Porto tem o dom de iludir.
Quinta caravela
Há, em Braga e em Évora, duas imagens instigantes de Nossa Senhora. A de Braga, situada numa parede externa da catedral, mostra a Virgem Maria amamentando o Menino Jesus. A de Évora, no interior de sua igreja principal, revela a mãe de Cristo grávida, mão sobre o ventre avolumado. Inexplicavelmente, essas duas representações foram poupadas pelos intolerantes e lá estão, humanizando Maria.
Sexta caravela
No Palácio de Mateus, em Vila Real, região de Trás os Montes, há um lago retangular cercado de árvores frondosas. Próximo a um dos vértices, um corpo de mulher repousa no espelho d´água. A solidão da estátua fustigou a sensibilidade de Lena, parceira de vida e de verso, que lhe dedicou o seguinte poema:
“Nua e linda e fria
de uma pele de pedra
e coração sem mágoa
nem passado nem futuro nem presente
deita eterna
eternamente estátua
mulher despida de histórias de carne
em lençol de água.”
Sétima caravela
Na cidade de Viseu, numa via pública, três fios líquidos escoam para o interior de bacias de pedra semicirculares acopladas, assim como os florões de onde saem os veios d´água, a um muro sobre o qual se erguem quatro colunas. Outrora, a fonte serviu ao clero, à nobreza e ao povo, cada classe social utilizando-se sempre do mesmo escoadouro. Religiosos e nobres não se entregavam à coleta. Alguém julgado mais adequado a essa tarefa menor a realizava para eles.
Em meio ao burburinho dos passantes, voltei no tempo e imaginei: para o clero, a água jorrava; para a nobreza, escorria; para o povo, pingava.
Oitava caravela
Em Portugal, é São Gonçalo de Amarante quem apadrinha candidatos ao enlace matrimonial. Numa igreja, quase a tocar o teto, há uma estátua do santo casamenteiro. De sua cintura, pende uma corda. Dizem que puxá-la e, ao mesmo tempo, solicitar casório é tiro e queda (sem qualquer alusão pejorativa ao matrimônio). Ao tomar conhecimento desse pormenor, um notório e convicto solteirão concluiu: “Agora entendo quando dizem que o noivo vai se enforcar…”
Nona caravela
A Serra da Estrela separa as regiões da Beira Alta e da Beira Baixa. No inverno, neva em seus lugares mais altos. Então, no manto alvo e frio com o qual o céu cobre as encostas, praticam-se esportes peculiares àquela estação do ano. Com a construção de uma torre, acresceram sete metros aos mil novecentos e noventa e três ofertados pela natureza. Dessa maneira, segundo apregoam, o ponto culminante da Serra da Estrela passou a exatos dois mil metros. O ser humano e sua eterna mania de impor sua marca. Tem sido assim, desde que o mundo é mundo, às vezes perigosamente.
Décima caravela
Situada no prolongamento da Casa do Capítulo do antigo Convento do Ouro, em Évora, a Capela dos Ossos possui três naves com abóbadas de arestas e quatro vãos, sustentadas por seis pilares octogonais. Suas paredes se revestem de ossos, exceto na parte inferior, azulejada. As colunas igualmente possuem, em sua base, três tiras de azulejos. Daí ao arremate superior, cobrem-se de ossadas, com pilhas de crânios e feixes horizontais de tíbias se intercalando. No primeiro vão, há dois corpos semimumificados, um adulto, outro infantil, atados como se fossem feixes de lenha. Nas abóbadas, emolduradas por fileiras de crânios, existem símbolos eucarísticos e da Paixão de Cristo, além de variada simbologia fúnebre e dísticos latinos. Os ossos que decoram o ambiente vieram da Igreja de São Francisco e do claustro do Convento do Ouro, que, em suas origens, também serviam de cemitério.
Embora macabra, a Capela dos Ossos acaba por envolver quem se aventura a visitá-la num misto de perplexidade, fascínio e meditação. Em sua entrada, lê-se: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos.”
Última caravela
A foto abaixo destaca a fama de descansados atribuída aos alentejanos. “Falta a rede”, diria um baiano bem-humorado. Na ausência dela, estiro-me numa cadeira e faço companhia aos irmãos de Alentejo. Dessa forma pachorrenta, lanço âncora e encerro a viagem à terra de Cabral. Afinal, ninguém é de ferro!
Nesta mesma revista, O Cais, você publicou outros textos muito interessantes. Já pensou em elaborar uma coletânea deles e publicar aqui?
Farei isso mais adiante numa postagem que irei chamar de “Na beira do cais”, conforme se denominava a coluna de “O cais em revista”. Será uma seleção. Alguns textos, pois foram muitos.
10/09/21
Caro Wanderlino
Hoje naveguei com você a bordo de suas caravelas pelas terras de Cabral.
Já havia caminhado por lá, mas hoje, pelo seu olhar foi uma nova viagem.
Parabéns pelo site, perfeito